Entrou, vinda do lado de estibordo, a primavera e apanhou-me incauto, na praia, à espera. Envolveu-me com os odores e os sabores que a caracterizam, e as cores, e os aromas, e a textura imprecisa das alergias. Desprevenido e feliz deixei enrolar-me. A água do mar molhou-me o corpo e a alma. O olhar tornou-se claro. A mente vazia. Era primavera.
O presidente da assembleia sorriu às raparigas de abril, com o verbo não me ligues e a presidente da nação declarou amor à presidente da comissão europeia, com o verbo não me deixes.
A primeira-ministra mentiu por compulsão, auxiliada pelo verbo talvez já não se lembrem, enquanto a líder da oposição verberava contra os sem-abrigo, prometendo acabar com eles através do verbo acreditar em mim.
A presidente das associações patronais reclamava por um salário que fosse mínimo, apoiada no verbo pretender, e o ministro das finanças entregava ao alemão um cartão de boas-festas com o verbo ficar a dever.
O ministro da agricultura oferecia o filho que a mulher grávida engendrara, acrescido do verbo procriar, enquanto a senhora secretária de estado declarava nunca ter dito o que se veio a comprovar que deveria ter dito, através do verbo correu mal, não se fala mais nisso.
O chanceler alemão pensou que não mandava na Europa, até que o verbo lhe demonstrou o contrário, através da subserviência.
A ministra do documento que nunca mais está pronto, onde se reformará a administração da coisa pública, perdeu a vergonha, entre Paris e Berlim e o verbo desonrar atingiu toda a família.
O cheiro a pastéis de Belém viajou até ao Canada pelo verbo já ninguém se lembra, mas a ministra competente, que falhou todas as contas, desde as de somar, às de prever, para já não falar das de subtrair e das de dividir, conjugou o verbo enriquecer e foi exercer a competência técnica para os lugares onde o verbo não precisa de rigor.
Revolvi as entranhas, na sedução da primavera, e descobri que tudo o que acabo de escrever é falso, pelo que não devem acreditar em tudo o que se escreve. Mas, se proclamo e afirmo o contrário do que escrevi, tão pouco devem acreditar naquilo que digo. Somos um povo de aldrabões, a começar por mim que o afirmo.
Não devemos, com licença da palavra, merda nenhuma! Nenhuma miséria pode ter engendrado dívidas deste tamanho, vão lá meter o barrete a outro, ou procurem, nas fímbrias dos verbos, os culpados.
Acatem com pudor a impossibilidade de a pobreza ter cometido luxos, e de todos os desgraçados do rendimento social de inserção serem milionários camuflados com cem mil euros em depósitos a prazo.
Não conspurquem o infortúnio dos sem-abrigo, nem quem não tem senão histórias de refeições lautas para alimentar os filhos.
Não confundam a riqueza dos presos no domicílio com os domicílios da pobreza.
Vogo, revoltoso, nos braços da primavera, que me permite o delírio. Poiso no chão os pés dormentes e tenho um recado no ouvido: há muitos anos que ela nos visita, impreterivelmente pontual. Já assistiu à sepultura de muitos mentirosos em mares de espuma, aturdidos com o pólen que devia alimentar as abelhas.
Fico a olhar o mar, na esperança da primavera que vem, para poder desabafar de novo ou para recordar o sonho mau desta primavera que dá largas à minha imaginação e apertos ao meu peito.
Antero Afonso