Começamos a aula assistindo uma pequena entrevista com Fernando Savater. Desta partimos para a análise de alguns dos conceitos que transbordavam das suas palavras e que eram assumidos pelos alunos com a mesma ligeireza com o senso comum costuma, pragmaticamente, descomplicar a realidade. Fomos aos bastidores de conceitos como liberdade, pessoa, responsabilidade, identidade, personalidade, singularidade e procuramos a sua essência. Um dos alunos desta inusitada turma CEF (para mim que sou, neste tipo de alunos, marinheira de primeiras águas) concluiu “ que as coisas que dizemos têm muito mais por trás do que eu pensava”
Depois lemos dois pequenos textos. Dois excertos das páginas introspetivas de dois jovens. Neles, Joana (do livro “ A lua de Joana”) e Adrian ( do livro “Adrian Mole na Crise da Adolescência”) desabafam sobre uma constatação comum: a incompreensão dos outros. Como se sentem sós mesmo quando estão com os outros. Como sentem que a comunicação não se estabelece, como sentem que ninguém os conhece como realmente são. As suas palavras mostram-nos dois jovens que assumem o direito ao reconhecimento e à atenção dos outros. Pais, irmão, colegas, professores, parecem ignorar o seu lugar no mundo, embora se perceba que, para ambos, o mundo deve ser visto a partir do seu umbigo. Só o seu diário lhes oferecia ouvido.
Quando acabamos de ler os textos, perguntei a sua opinião sobre o que ouviram. Na globalidade identificaram-se com eles. No conteúdo, não na forma. Desdenharam do facto dos jovens terem um diário. “ Que coisa, professora, escrever o que nos “chateia”…. Isso já se usou? No seu tempo era assim? Não conheço nenhum cromo que tenha um diário…” Foram as primeiras reações. Expliquei que quem sente que não precisa de um diário para desabafar é porque tem o privilégio de ter alguém com quem partilhar confidências e está preparado para a crítica das suas ideias. Pois a vantagem do diário é que escrevemos tudo que queremos, sem medo da crítica.
“ Nesse caso acho que vou começar a escrever um….-disse um dos alunos mais divertidos. Mas acho que meu vai ser um” minutário “, pois não há um minuto que eu não tenha uma ideia …. Eu sou um verdadeiro idiota “. Os outros riram-se. Eu ri também: “ Se és um idiota, então todos nós reconhecemos que és do tipo mais simpático e inofensivo: do tipo lúcido “ concordei, entrando na brincadeira.
-“Obrigada professora….. Acho eu – acrescentou indeciso!”
Limado o problema da forma, fomos à substância. “Então concordam que os jovens são incompreendidos?”- perguntei. Claro. Parecia evidente. Responderam quase unanimemente (só aqueles que ainda não consegui que participem não se manifestaram). E foram vários os argumentos apresentados. Bons argumentos devo acrescentar.
“Bom, então vamos concordar que a comunicação dos adultos com os jovens é muito difícil pela incompreensão da vossa realidade específica. Mas a comunicação é um caminho com dois sentidos. Será que vocês também fazem esforço para compreender quem acusam de não vos compreender? Tentam colocar-se no lugar dos outros, para perceber as suas opiniões, as suas atitudes, as suas ações?
Ninguém respondeu. O mesmo aluno, sempre destímido, diz: “A professora é de Filosofia não é? Pois nós não somos do regular e não percebemos nada dessas coisas.”
-“ Claro que percebem. A filosofia é a arte de pensar e o que estamos aqui a fazer é treino para aprendizes de artistas do pensamento “ Riram-se. Retomando o meu raciocínio, resolvi exemplificar: “ pensa num motivo que saibas que leva, muitas vezes, a tua mãe a zangar-se contigo.”
Ele respondeu de imediato: “até lhe digo dois: a minha mãe fica furiosa porque quando me liga nunca lhe atendo o telemóvel e também porque nunca paro em casa. Então quando chego tarde e não aviso….. Eu estou sempre a dizer-lhe que não me apetece ir para casa mas ela não compreende.”
-“Bom, agora imagina que tens um problema durante o dia, sei lá, perdeste a carteira e não tens dinheiro para o transporte ou deste uma queda e foste para o hospital. Ligas para a tua mãe, repetidamente e ela não responde. Ou chegas a casa e ela não está. O tempo passa, chega a hora do jantar, chega a noite cerrada e nada. Não chega nem te atende o telemóvel. Esperas, esperas e quando finamente chega e lhe perguntas porque não te atendeu, respondente que simplesmente não lhe apetecia ir para casa. Como pensas que te sentirias?”
Ele perdeu o seu ar risonho. “Não achava graça nenhuma!!. Ela tinha obrigação de me avisar, porque mãe é diferente- disse sem firmeza , percebendo que o seu argumento poderia virar-se contra ele .”
“O que sentiste é exatamente o que ela sente. E não há diferença. Não a preocupar é a tua obrigação de filho. Como vês é simples. O truque para não te zangares com ela é, antes agir ou responder, perguntares a ti próprio “ E se eu fosse a minha mãe?”.
Inesperadamente ele respondeu: “se eu fosse a minha mãe? Fugia de casa!”.
Olhei para ele e disse: “então, estás a ver como tens um bom motivo para querer ir para casa? Sabes que ela está lá. Apesar de tudo, ela está lá.”
Fez-se silencio. Pensei que seria um bom fecho para a aprendizagem sobre o assunto em questão. Talvez todos nós pensássemos o mesmo, mas foi aquele aluno que nunca falou que fechou a discussão com chave de ouro: “ pior do que ter uma mãe que está sempre a implicar, é não ter uma mãe para implicar connosco!”.
Estava tudo dito.
Ana Paula Silva