João Habitualmente
Eu achava que era quase impossível, porque teria sido possível, acabar o ano sem ler “Mais Notícias do Pensamento Desconexo” de João Habitualmente. Paguei pela dedicatória um pouco mais de dez euros, mas o João, habitualmente, é magnânimo e ofereceu-me, como bónus, o livro onde a tinha escrito. Sem dar conta, mas prestando contas, paguei o livro, sem didascálias ou outras divagações. Li-o, assim, com o suor do meu rosto, situação muito desagradável, porque o suor impede a concentração na leitura, como uma nódoa na camisa, situada ao nível do queixo da rapariga, nos impede uma declaração de amor. Nunca saberemos se é estrabismo ou falta de concentração, aquilo que lhe desvia o olhar do nosso. Em vão, mandei a afilhada passar por casa dele. Onde não há escadas, não há almoços grátis.
O pensamento desconexo exige do leitor a lógica dialética e, consequentemente, se o meu leitor é só formal compre o livro, não perca tempo com explicações e, se puder, divirta-se, mas se é da dialética, perca tempo na leitura porque há subtileza, na perceção do João, em relação às coisas que o rodeiam, há argumentação lúcida e equilibrada apesar de não poder afirmar, de forma taxativa, que o João – habitualmente cego - tem capacidade de ver clara e rapidamente. Aliás, nunca lhe peço, olha para o que eu digo, essa flagelação para cegos e invisuais, que só o pensamento desconexo permite compreender na sua magnitude e complexidade.
O pensamento desconexo é a desordem no caos, permite continuidade e claridade naquilo que ele mesmo tornou descontínuo e obscuro.
De Saramago aos tios, da carne que não apetece aos vegetarianos, da criação do mundo ao enigma dos chapéus dos papas, da ponta da tecnologia à minha dentista que me deixa de boca aberta, do bolso de Einstein onde não cabia o polvo ao lagareiro, dos epitáfios aos Rottweiler que os justificam, da massagista que molda a cabeça de Raquel ao sentido bucólico que o autor manifesta pelas cabras e pelo bode, este soberano, aquelas abertas à natureza, do amplexo do magarefe sobre o qual não tergiversa, como se não tivesse utilidade, à Maria do Rosário, que se salvou por um triz de contrair matrimónio com o xeque, até à perna de que a manicura, por uma unha negra, não fez meia-perna, há uma observação quase perfeita das nossas imperfeições, dos nossos desejos e dos vossos recalcamentos, que os meus querem repouso.
A cidade esventrada, pela maquinaria pesada, num cenário fabril em plena rua, deleita o autor e faz corar de inveja Frederico Engels, incapaz de observar algo de parecido, na longínqua Inglaterra do século XIX. Max Weber dificilmente observaria - e Durkheim muito menos – esta hierarquia social baseada nas espécies marinhas, que denuncia o acesso desigual aos bens e aos serviços “O polvo come camarão e caranguejo com a mesma naturalidade com que o ricaço come lagosta e o sapateiro come a sapateira.”
O acesso ao pensamento desconexo permite desvendar enigmas e paradoxos políticos. Vou dar um exemplo, mudando de autor e de registo. Há dias, José Luís Fernandes, um conceituado psicólogo que, habitualmente, recebe prémios de excelência, como em 2013, pelo seu trabalho de pedagogo, sugeriu-me a leitura da sua crónica, intitulada Neurose de Natal, publicada na Porto24. Perguntei-lhe:
- Sendo o Porto a cidade invicta, uma urbe única e singular, como vais já na Porto24? Onde meteste as outras 23? Submergiram, como submarinos, ou apropriaste-te delas indevidamente, como suponho, para usufruto, proibido, que é o mais desejado?
Surpreendido, balbuciou:
- É ilícito, mas não é ilegal!
Mandei arquivar o caso. Acho que estava clara a explicação sobre o pensamento desconexo. Abertas as portas da compreensão, saiu o Paulo com um exemplar debaixo do braço, que os outros eram demasiados grandes.
João Habitualmente sorriu. Disse, como se a coisa não fosse com ele: A vida é uma anedota – a única, aliás, em que as pessoas choram quando acaba.
Antero Afonso