Retomámos, por casualidade, esta semana, numa reunião de trabalho na Católica Porto, temas ligados à identidade e culturas, nomeadamente a identidade profissional. E no meio de toda a complexidade do conceito de identidade nas suas múltiplas dimensões – abordagem que era por força científica – na minha mente, sabe-se lá porquê, começou a aparecer em fundo o refrão velhinho que cantou, e canta, o Sérgio Godinho: “Pode alguém ser quem não é?”… Aquela sensação de acordar de manhã com uma música ou uma frase que nos persegue….começou na reunião, a despropósito, e tem continuado a acompanhar-me… Escrever semanalmente tem a grande vantagem, para o autor, de suscitar interrogações… Porque seria? Não sei exatamente a resposta. Provavelmente não há resposta, mas há mais perguntas. Venho por isso pensando que alguns nexos ligam o poema e a canção à questão da identidade e das culturas e pertenças. O reconhecimento da profundidade que as culturas assumem na construção das identidades é um dado inestimável do conhecimento científico no domínio social, particularmente iluminado pela antropologia, mas não só.
Sabemos hoje que somos e agimos no interior de uma rede densa de crenças, valores, visões, práticas aceites e rejeitadas, que apropriamos pela pertença, gradual e silenciosamente construída, a um grupo, uma comunidade, uma “cultura”. Tão forte que é invisível. Tão espessa que não a posso arrancar de mim. Tão intensa porque construída de adesões e rejeições que se vão tecendo.
Soube o que era ser portuguesa quando num país estrangeiro estranhavam que eu fosse muito efusiva ao chegar e ao partir. Ou quando aí me apetecia loucamente ouvir ou cantar o fado.. que em casa não valorizava muito, ao tempo… Ou que gostasse de não ter hora marcada para encerrar um jantar entre amigos… Soube o que é ser mulher quando me enfureci por me elogiarem, na juventude, um dado raciocínio de aluna por ser alegadamente “pensar bem como um homem”… Ou quando discutia com a minha mãe a alegada postura discreta que convinha a uma menina para ter sorte na vida, ou iria sofrer muitos desaires. Ou quando percebi que me sentia professora quando os alunos, em momentos diferentes da vida, me devolviam – e devolvem – o efeito “Ah!, agora faz sentido!” – e isso me tornou claríssimo a natureza primeira do ensinar, essa função para mim admirável de mediar a condução (do verbo grego Ago, conduzir) de alguém à apropriação de algum conhecimento. Mediação quase mágica, mas poderosamente racional ao mesmo tempo. Parte nuclear de uma identidade profissional que, como outras, está em processo transformativo.
Aprendi também que a maior parte das desejadas transformações e a sempre invocada “resistência” as mesmas - no plano social, educativo, individual - são sobretudo resultado de culturas de grupos e organizações que construíram ao longo dos tempos um certo modo de estar, uma cultura no interior da qual se gera a “sua” identidade. Ninguém pode “ser quem não é…”
Mas compreender e desocultar o papel das culturas na identidade que transportamos comporta outra vertente de interrogação: serão as culturas imutáveis como rochedos (que eles mesmos mudam..)? A históricas e fundamentalistas? Penso assim ou concordo com tal ou tal prática porque está na minha cultura de pertença e esse argumento é final? … Porque sempre foi assim neste grupo profissional, ou nesta comunidade, é a nossa cultura, não “estamos preparados“ para encarar outros modos de ser?... Estaríamos, creio, no declive trágico da irracionalidade… justificaríamos a barbárie em nome das pertenças, aceitaríamos a condenação à mediocridade ou à dominação por passividade “cultural”.
As culturas, poderosas como são, configuram-se como construções históricas e sociais, moldadas e modificadas no tempo pela inteligência dos atores, pela interação que as circunstâncias da vida e dos tempos vão trazendo aos processos identitários e culturais, pela sua capacidade de aderir/rejeitar, analisar/escolher. As culturas são organismos vivos, estruturantes mas mutantes. Os homens agem e pensam, e mudam, de acordo com o tempo e o contexto, justamente pensando e agindo sobre eles. O homem e a sua circunstância, nas palavras nunca demasiado repetidas do filósofo espanhol Ortega Y Gassett.
Por isso as identidades são vivas e se reconstroem. Por isso não podem ser fortalezas de imobilismo defensivo, auto-justificações para o conformismo, ghettos a que nos condenam ou nos condenamos, armas de arremesso contra outros porque não partilham a “nossa” identidade.
Tinha razão Sérgio Godinho, na toada e nas palavras que me vêm perseguindo – já percebi um pouco porquê…
“Pode alguém ser livre
se outro alguém não é
a corda dum outro
serve-me no pé
nos dois punhos, nas mãos
no pescoço, diz-me:
Pode alguém ser quem não é?”
Maria do Céu Roldão