Às vezes um burro desconcertante, ou mesmo um cavalo desalinhado do cenário, baralham ainda mais a mistura caótica e ternurenta desta paisagem – perdidos e assustados no meio de um campo donde se vê sempre o mar. Talvez ecoando, sem saberem, o poeta Rafael Alberti “... galopa caballo cuatralbo, jinete del pueblo que la tierra es tuya...a galopar, a galopar... , hasta enterrarlos en el mar...”
Da minha mitologia caseira sobre a morte e o tempo final da (minha) vida, fazem parte duas narrativas com que já brinco – mas que são, na sua contradição, ambas verdadeiras para mim. Uma é o desejo de terminar os meus dias num mosteiro isolado, num mundo de silêncio e paz, que compense e dê descanso ao mundo de falas excessivas que foi toda a minha vida... Ninguém acredita que eu venha a querer ficar calada...mas eu sinto isso, num dos lados de mim. A outra é o desejo oposto – sempre que viajo em Espanha vem-me a vontade de morrer lá, de passar os últimos dias num mundo que se projeta na rua, e que explode em vida por todos os cantos. Num lugar qualquer – “piso de alquiler” ou “casa de reposo..” - bem plantado no meio de uma cidade que tenha por perto a sua Plaza Mayor (grande ou pequena, tanto faz, mas “plaza”..) bem cheinha de cafés e esplanadas, de verão e de inverno. Aquelas onde vejo as minhas homólogas, apenas um pouco mais adiantadas na caminhada , todas bem vestidas e penteadas, cuidadíssimas, arrastando a perna ou a bengala, a passarem os fins da tarde sentadas à volta de bebidas (as próprias para a idade...) conversando, conversando, animadíssimas, felizes nas suas simples cumplicidades de velhas mulheres cheias de memórias, e cultivando a alegria de ainda viver e ver a vida a vibrar em volta.
Quem sabe nada disto acontecerá... mas se acontecesse, o que iria ser-me mais difícil era não estar em Lisboa no mês de maio.... Porque a minha cidade, em maio, se transforma num lugar mágico. Afogada num enorme esplendor lilás que nos encandeia o olhar, que pisamos no chão atapetado das ruas, que enche as varandas e os pátios, que se acumula em cima dos carros...
É Lisboa redesenhada pelo grito roxo dos jacarandás que, por breves dias, nos fazem acreditar que existe a perfeição.
MARIA DO CÉU ROLDÃO