O comboio foi na minha vida um referencial permanente, e continua a ser um meio de viagem que me fascina, mesmo se faço agora duas ou três vezes por semana o percurso Lisboa-Porto- Lisboa. Já não nos “Correios” nem nos “Rápidos” de outras eras (e ainda havia o “Foguete”! espécie de Concorde do caminho de ferro, em que nunca viajei..), mas nos mais funcionais e menos míticos Alfas e Intercidades, já que ainda não chegámos a ter aqui na patriazinha o nosso Foguete do século XXI – o TGV... Podem vir os freudianos falar da complexa e erótica simbologia associada ao comboio...pouco me importa, e por sinal não me convencem...
Sei é que, para mim, da janela de um comboio vê-se o mundo. Muito mais do que de um carro, quem sabe apenas em resultado de um outro jogo de distâncias, velocidade e proporções. Mas que muda tudo. Olho da janela a paisagem sempre repetida deste mesmo trajeto de Lisboa ao Porto e ondas de passado entram pela mesma janela de onde olhava assustada o rio Douro... Cada zona evoca imagens, umas literárias outras vividas, umas pessoais, outras literárias, outras puros estereótipos.... Da Joaninha dos olhos verdes no Vale de Santarém aos esteiros em Vila Franca. Da Coimbra a ecoar clichés de romantismo, às “pombinhas “ de Alfarelos, uns pães maravilhosos, com a forma da dita pomba, que mulheres vendiam na gare, às vezes com umas pequenas bilhas de barro com água fresquíssima. Em Espinho e na Granja ecoam as histórias contadas da infância da minha mãe, quando por ali se passeava – contava ela... - elegantemente vestido de branco, bigode farto, bengala e chapéu , um pai de família talvez viúvo... muito charmoso, que a impressionou pela sua elegância e distinção, com seus filhos e filhas também vestidos no mesmo branco, naqueles trajes “de praia” que tantas vezes revisitei nas fotos da velhinha Ilustração Portuguesa, fértil em notícias da socialite da época - tal famoso “sportsman” , ou aquela outra “gentil senhora”, da burguesia “a banhos” nas praias chiques do Norte. Todo um tempo que parece estar plasmado nas paisagens, como camadas telúricas daquela “espessura” do passado de que falava o historiador Fernand Braudel...
Do comboio também se vêem os sonhos. No comboio – estará aí a tal componente freudiana?..- pode libertar-se a fantasia, manejando um olhar defendido que percorre, a partir deste mágico espaço fechado em movimento, livre e com um pouco de distância, casas, cidades, paisagens. Como se fosse um filme, é a imagem que sempre me ocorre...Mas um filme de que podemos, por um par de horas, ser os realizadores, criando sem restrição... Como será viver ali, na beira daquele rio? Naquele lugar talvez já tenham crescido roseiras.. Que histórias contam os casarões em ruínas ou as casinhas brancas perdidas no meio dos montes? Quem são, ou quem queremos que sejam, as pessoas que vemos nos sítios urbanos? De que destino estarão à espera os rostos que desfilam diante do nosso olhar, por momentos, nas gares? Que sonhos, que dores, que tragédias, que esperanças?...
Doris Lessing recriou num romance as vidas dos seus pais, fantasiando-lhes uma outra vida possível sobre a vida real que fora a deles. É esse mesmo desejo – de recriar o real como se fosse outro ou outros possíveis – que me pacifica, quando o mundo que roda lá fora, ao ritmo regular do Alfa, se deixa recriar sem risco e sem limites. Ao sabor do meu desejo. Aberto a todas as possibilidades.
Maria do Céu Roldão