Voltei mais tarde a São Miguel, animada do propósito de fixar em foto aquele cenário único. E foi um belo desastre… Não, não estraguei nada…Ficaram até bem, as fotos. Fizeram jus a um fragmento da análise de Barthes: “as fotos são signos que não prosperam bem, que coalham, como o leite”. Estão muito bem arrumadas numa pasta de ficheiros algures no meu computador, acompanhadas de muitas centenas de outros fragmentos de vida e mundo. Mas não capturaram nada da magia da visão que me deu o olhar desarmado que foi o meu na primeira vez… Apenas testemunham que eu estive lá . E que é lindo. “A vidência do fotógrafo não consiste em “ver”, mas estar lá.” (Roland Barthes, “A Câmara Clara).
Ler Barthes ensina, entre muitas outras coisas, a ler o poder extraordinário da fotografia como revelador e construtor de sentidos e narrativas, de identidades e anti-identidades, de memória e de perda dela… Fotografar é sem dúvida um processo e uma arte de cariz quase miraculoso. Mas do que hoje falo não é dessa magia, que me fascina. Mas sim do facto de que, pela fotografia, pela mediação constante de uma qualquer forma de fixar e transmitir, pela omnipresença da televisão, pela internet e pela infinidade de outros recursos mediadores, dos nossos telemóveis, androides, ipads, e quejandos, presentes e futuros, divorciamos a cada dia um pouco mais o nosso olhar do contacto direto com a realidade, com o outro, com a vida. Com a capacidade de relembrar com o coração, porque só na memória guardamos cada imagem, carregada dos sentidos que lhes demos – como o que me aconteceu na Lagoa do Fogo…
Se pensarmos bem, já quase nada nos aparece a nu, na sua pureza de simples realidade, em contacto direto com o nosso olhar, livre de uma qualquer mediação, ou virtualização. Quando viajamos, quando estamos com amigos, quando nos nasce um filho ou neto, quando redecoramos a sala, quando as roseiras ou as magnólias florescem no jardim….A primeira tendência é fixar, enquadrar, guardar….Se ela não ocorrer, logo nos conduz ao seu desejo…Que bela foto poderia fazer aqui, que ângulo poderia captar?. Vou gravar… mandar/partilhar/fixar… O que traz o ganho inestimável de criar uma riqueza enorme de registos de vida, sem dúvida sem preço, relembráveis e partilháveis, como nunca antes foi possível.
Mas nos atenua, creio, o poder de ver. É um pouco como se constantemente partíssemos o mundo em planos cinematográficos, segmentos irremediavelmente quadrangulares, que compõem as adequadas “frames” sem as quais já nos é difícil “ler” o que nos rodeia. Quando viajo, como quase toda a gente, passo a vida a querer fixar aqui este recanto, ali aquele detalhe…E isso é bom. Mas vou perdendo o deslumbramento do olhar enquanto janela que se expõe, sem guardas, ao inesperado do visível, à vertigem da imensidade, ao corpo a corpo, sem defesa, com a beleza ou o horror.
Somos o tempo a que pertencemos. Bem hajam pois as mediações infindáveis que nos enriquecem. Mas que não se oculte a consciência das perdas que sempre acompanham os ganhos…
Tenho pois saudades de olhar sem bengalas. De libertar o olhar do aprisionamento das mediações. Da exaltação de abrir os olhos e simplesmente ver. De guardar da minha vida a força das imagens que o olhar me tenha permitido capturar.
Marguerite Yourcenar num texto a meu ver belíssimo, falava assim das imagens que, quem sabe, revisitariam o seu olhar na hora da morte:
“Adriano falava de morrer com os olhos abertos ….E quem sabe? Talvez sejamos nesse momento visitados por algumas recordações, como se fossem anjos...Talvez a memória dos jacintos do Mar Morto ou das violetas de Connecticut na primavera… ou das laranjas habilmente apanhada nos ramos pelo meu pai, num jardim do Sul… ou de um cemitério na Suiça coberto de roseiras … Ou das dunas na Flandres e nas ilhas da Virgínia, onde o ruído do mar dura desde o princípio do mundo...Ou da Missa da Ressurreição numa aldeia grega depois de uma travessia nocturna da montanha… Ou, mais próximas, apenas decantadas para já serem chamadas de memórias, a lembrança do mar verde dos trópicos, ou de um voo triangular de cisnes selvagens a caminho do Árctico…Ou o nascer do sol na manhã de Páscoa visto do alto de um rochedo em Mount Desert….
…Ou talvez nada disto, mas apenas um grande vazio azul e branco….”
(Marguerite Yourcenar, 1980, “Les Yeux Ouverts”)
Maria do Céu Roldão