Ana Luísa Melo
QUASE SEIS ANOS
[ou quando tudo é semente]
Hoje cruzei-me com ele perto da entrada da escola.
Está quase um homem. Olhámo-nos. Sorrimos e inclinámos as cabeças num cumprimento mútuo.
Já lá vão quase seis anos.
Nessa altura, fomos tutora e tutorando. Uma aventura.
Aquando da implementação de um projecto de tutoria na escola, foi-me proposto integrá-lo. Sem qualquer preparação específica para a função, aceitei a proposta e tentei preparar-me o melhor que pude para começar a trabalhar nesse desafio. Quem é professor sabe bem que acontece com muita frequência esta situação: começar a trabalhar – “ir para o terreno” – sem grandes apetrechos para ele. Inexperientes, confiamos em nós, numa intuição que nos orienta e guia procurando ir fazendo o melhor, ainda que não saibamos bem como abordá-lo. Foi assim.
Foi ele. 8º ano, desinteresse escolar absoluto, acentuada falta de assiduidade, alguns comportamentos de risco, companhias extra escola suspeitas (ou confirmadas como indesejáveis) e um ainda maior rol de elementos pouco favoráveis ao sucesso escolar.
Calado, vinha ter comigo nos últimos 45 minutos das tardes de 3ª feira. Era fim de tarde, o dia tinha chegado ao fim e antecipava-se o regresso a casa. Não era um horário propício ao trabalho e ao estudo. O dia inteiro na escola, uma série de aulas, então… que fazer?
Numa primeira fase, procurei saber quem era. Depois, saber se sabia porque estava ali, em tutoria. E, também, que expectativas tinha.
Tive imensa dificuldade. Eu queria ouvir (para poder compreender) mas não conseguia fazer falar quem não estava disposto a isso. Fui caminhando com cuidado, com muito cuidado.
As situações de indisciplina (pautadas, sobretudo, pela insolência) repetiam-se. A directora de turma perguntava-me se estava a correr bem e eu pouco tinha para dizer. Corria bem (éramos pontuais e estávamos juntos!) mas não podia acrescentar muito mais. Um dia, uma situação de insolência mais grave foi decisiva. Nesse dia, chegou com o olhar mais virado para o chão. Entrámos para o pequeno (mesmo muito pequeno) gabinete onde passávamos aquele tempo. Sentámo-nos e olhámos um para o outro. Percebi que era um momento importante e ele também o percebeu. Perguntei:
- Queres contar-me o que se passou?
Olhou-me e contou. Num discurso corrido, só factos sem juízos de opinião. Com os termos todos. Feios. Fortes.
Fiquei atenta. Ouvi. Escutei.
Senti que devia ter alguma receita mágica para intervir; mas não tinha. A minha consciência ou o bom senso (?) levou-me a perguntar-lhe o que deveria, então, fazer. Respondeu-me conforme o esperado: pedir desculpa,…enfim, aquilo que era aceitável.
Na semana seguinte, disse-me que assim tinha feito. E o nosso tempo mudou.
Conseguimos conversar. Sempre com alguns silêncios, mas falávamos. Soube como vivia a ausência do pai (que estava fora a trabalhar e vinha de quinze em quinze dias passar o fim de semana), como passava os dias na escola (todos, desde a manhã ao fim da tarde), a responsabilidade de ir buscar o irmão mais novo à escola ao lado e levá-lo para casa (onde lhe dava o lanche e acompanhava até à chegada da mãe, perto da hora do jantar) e o que fazia no quarto após o jantar (estava no computador). Sempre conversas onde não havia opiniões. Quase só factos.
Conversámos muito (com muitos silêncios também). E o ano foi chegando ao fim. Lento, mas foi. Fez-me aprender muito. Aprendi que à minha volta há muitos a quem foi (e é) roubada uma infância insubstituível. Nunca fizemos grande trabalho de estudo. Mas ficou-me muito presente uma situação séria e intensa. Lia muito mal e era sofrível a sua leitura de um texto que era necessário para a disciplina de Português (O gato malhado e a andorinha Sinhá, de Jorge Amado). Num impulso, propus-me ler. Pedagogicamente, sei que o ideal seria que ele o fizesse mas não o fez ou eu não consegui levá-lo a isso. Enfim, li o texto. Todo. Em voz alta. Lado a lado, na secretária, ouvimos os dois a minha voz. No fim do texto, comoveu-se. Eu também. E não dissemos nada.
Por motivos imprevistos, não tornámos a estar juntos naquele tempo. Ficou aquele momento a marcar o nosso último encontro.
Quando hoje, nos cruzámos, veio-me tudo à memória. Aquele olhar, recordou-me esse tempo e, também um Fragmento de Novalis, que na sua singeleza formal assume a densidade de uma grande esperança: Tudo é semente.