Acabei de falar com uma colega ao telefone que me disse: “sabes aquele filme de que me falaste e de como poderia utilizá-lo como instrumento pedagógico na minha aula do 9º ano de Educação Cívica? Mostrei na última aula e adoraram. O debate que se seguiu foi excelente e estou com grandes expetativas para ver o resultado da ficha que me enviaste. Obrigada “
Quando desliguei o telefone pensei como coisas simples que partilhamos podem trazer sentimentos de gratidão não só para aqueles com que partilhamos alguma coisa mas sobretudo para aqueles que partilham.
Sentir-nos úteis, contribuir, nem que seja em pequena porção, para que alguma coisa seja diferente, melhor ou pelo menos que tente ser melhor, é uma sensação que deveria estar presente no dia-a-dia profissional dos professores.
E não falo só e materiais didáticos, ideias ou livros falo também de experiências, sensações, sentimentos.
Ontem foi a minha última aula do período de uma das minhas turmas. A turma que tenho aprendido a conhecer pois neles tudo é muito novo para mim. A minha turma CEF. Entreguei a avaliação dos últimos elementos que compõe o seu portefólio de avaliação contínua do 2º período e fizemos a autoavaliação.
Quando concluímos esta tarefa ainda faltavam muitos minutos para terminar a aula (muitos minutos em sala de aula sem um suporte que cative o interesse dos alunos CEF pode ser uma eternidade) e como não queria introduzir, naquele momento, o tema a estudar no 3º período, resolvi que iriamos conversar sobre as suas expetativas para o futuro.
Não têm. O futuro é uma coisa de que não querem falar. Não sei se por medo do que podem esperar ou apenas porque não conseguem projetar-se num plano de vida pois a sua vida é demasiado plana. A simplicidade de uma vida sem projetos é uma forma de assumir que essa simplicidade não é mais do que a fuga à complexidade dos obstáculos que a enfrentariam. Também não têm sonhos. É um luxo a que não se permitem. Para quê sonhar se na sua curta vida já perceberam que isso é só privilégio de alguns?
“ Não pensem assim” aconselho. “Desejem tudo, lutem por muito e conquistem alguma coisa.”. Quem não tem sonhos, quem não tem ambições, perderá sempre a oportunidade de conquistar seja o que for.”
“ O que é preciso é ter sorte! “ Suspira um aluno. Digo-lhe que a sorte não nos procura, nós é que temos de “arregaçar as mangas” e procurá-la. Mas que ela não está à nossa espera de braços abertos. É preciso conquistá-la. Olha para mim e o que vejo no seu olhar, vejo no olhar de todos: “ o que é que ela sabe da minha vida? O que sabe dos pedregulhos do caminho que tenho que percorrer para procurar essa sorte? “.
Para quebrar o eloquente silêncio que se sentia na sala, um aluno, a despropósito, disse: “ hoje é dia do pai”. Aproveitei a fuga é disse: “pois é. E então já tens alguma coisa para oferecer ao teu pai?”. Ele respondeu que sim. Que tinha amealhado algum dinheiro e lhe ia comprar uma camisola que fez questão de informar custava 19 euros.
O colega do lado olhava para ele entre o enigmático e o interessado. Mantendo-me no tema, perguntei-lhe. “ E então também tens alguma coisa para lembrar o dia? “ Baixou os olhos. Senti que tinha cometido uma gafe relacional. Antes que eu resolvesse a situação um pouco confrangedora ele olhou para mim e com os olhos mais tristes do mundo disse com uma raiva dolorosa:” Esse eu quero que morra longe!” Prendas só dou à minha mãe. Ela merece”. Senti que toda aquela dor não deveria ser apenas resultado de uma afirmação adolescente. Percebi um passado, uma história. Os colegas olharam para ele com solidariedade, compreensão.
O que dizer quando somos assim atropelados pela vida dolorosa dos outros? Percebi naquela voz e naquele olhar o que me tentaram dizer, minutos antes, todos. Como sonhar é tão difícil para aqueles a quem a vida não dá paz.
Quando me sinto presa entre a lágrima e a palavra, entro por atalhos: ou brinco ou dou a volta ao texto. A situação não admitia brincadeira. E então disse: “ que bom que tens uma mãe para presentear e ainda melhor que tens uma mãe que merece os teus presentes.” E num golpe de asa estávamos a falar de prendas para o próximo dia da mãe.
O que é que tem esta história a ver com a introdução desta crónica? Umas horas mais tarde encontrei-me com um colega de dá aulas nesta turma que me perguntou como estavam as avaliações na minha disciplina. Referiu em concreto o caso do aluno em questão dizendo que até tinha começado muito bem mas que agora parecia disperso, desinteressado. Contei-lhe e episódio. Falou-me de outras situações que teria percebido. Resolvemos falar no conselho de turma com outros colegas para ver se havia algo mais a partilhar e a fazer para ajudar. Uma coisa é certa: vamos estar mais atentos.
Um professor não é uma ilha. Com os seus colegas e alunos são a escola e uma escola é um continente. Um continente vulcânico. Com planícies e zonas montanhosas. Com dias de chuva e dias de sol. Mesmo andando à deriva num leito de água, os continentes permanecem porque nele vive gente. E só existirão enquanto o mais importante for a partilha entre essa gente. Pois senão, como disse Einstein o futuro será voltar à relação do “pau e da pedra”.
Porque nada mais teremos para partilhar.
Ana Paula Silva