Aqueles que trabalham ou convivem comigo mais de perto certamente esboçarão um sorriso face ao título desta Quinta…É sabido que cada uma das mil e trezentas vezes, ou mais, em que, por mês, oiço esta palavra, muitíssimas vezes entre colegas de profissão mas não só, também muito glosada entre políticos e jornalistas , fico com uma alergia quase física, arrepia-se-me a pele …e é visível na expressão que me atraiçoa, ainda que me esforce por não deixar transparecer na reação verbal…Alunos e parceiros de “partilha” já ironizam com esta minha relutância que se vai ampliando à medida do crescimento usuário da palavra nos clichés do nosso quotidiano. E porque terei eu tão negativa reação? Por ser avessa a partilhas?.. Muito individualista e fechada?.. Bom, poderei ter algum desses defeitos, mas não são os meus piores certamente... Pelo contrário, valorizo muitíssimo o viver e fazer com, tanto quanto desvalorizo, desde que me lembro de pensar, desde os cromos da caderneta das bandeiras, na escola primária, até ao património que era suposta herdar, a posse em geral, e o domínio individualista do “isto é meu”, que realmente nunca se ancorou na minha pessoa. Foi isso a que chamamos partilha que me levou, por exemplo, à militância cristã (”.qual orvalho da manhã é a alegria cristã de vivermos como irmãos” …recordo o cântico…). E foi também ela, a partilha, que esteve no centro do meu afastamento da mesma pertença religiosa . Pelo desconforto, para mim, da sua incoerente ausência em certo viver comunitário dito cristão e em muita da prática eclesial, entre muitas outras coisas. Todas as outras militâncias da minha vida se ancoram no princípio da prevalência do comum, do partilhado – do bem estar à riqueza, da liberdade ao amor, da festa ao trabalho profissional.
O que verdadeiramente me incomoda é o uso estereotipado, recorrente e cada vez mais vazio, que vem associado ao generalizado uso bem pensante da ideia de “partilha” no discurso corrente. Como se dizê-lo muitas vezes o tornasse verdadeiro, na grande ilusão de substituir as coisas pelos nomes, que Gaston Bachelard tão bem definiu como “o obstáculo verbal” - um dos obstáculos epistemológicos por si analisados que mais dificulta a construção rigorosa do conhecimento.
Inundam-nos as disputas de poder pelos territórios torturados do Médio Oriente ou da Ucrânia. Invadem a nossa vida coletiva impensáveis ódios, reconfigurados por novos interesses, supostamente em torno de religiões e etnias. Na ancestral, civilizada e elegante Europa , impõe-se a nova moral financeira e olha-se para a democracia - o modo político mais nobre da partilha - como um desagradável incómodo para as políticas financeiras que instituem a partilha da pobreza e do retrocesso. Nas escolas trabalhamos há décadas num modo individual que alguns, a duras penas, tentam tornar mais partilhado; mas não há pedacinho de discurso educativo, dos documentos oficiais à fala dos atores, ou às entrevistas a dirigentes, que não convoque a grande “partilha e troca de experiências” que, a acreditar no discurso, pareceria já ultra generalizada… As reportagens televisivas em modo vox populi fornecem diariamente pérolas do género –“eles têm todas as razões para fazer esta greve , eu até apoio, mas porque hão-de prejudicar-me a mim?...” . Ou , a propósito do extraordinário caso de justiça do “Palito”, aplaudido (!!) à saída do tribunal, que matou duas mulheres e tentou matar outras duas, suas familiares diretas pela velha causa (olhada como tão legitimadora…) do alegado ciúme, mas andou a monte, acolhido pelos locais na zona onde vivia, afirmações recorrentes do tipo “ eu ajudava-o, pois claro, não tenho nada a ver com o que ele fez… a mim tratou- me sempre bem, tomávamos café juntos, era simpático…” .E etc…Primores de um sentimento de “partilha” distorcido, tal como de facto emerge da espuma dos dias neste nosso mundo de palavras.
E contudo a partilha é, sim, um valor maior numa sociedade que se pretende cívica e igualitária. O cimento central de uma construção democrática digna desse nome. A forma ética de passarmos de indivíduos a pessoas. Certamente não podemos evitar o seu uso enviesado, banalizador e vazio. Mas talvez possamos mobilizá-la mais na nossa práxis e ser mais púdicos e seletivos quando a convocamos na nossa fala. Para que os nomes não substituam – nem destruam – as coisas.