Naturalização ou empréstimo?
O ano de 2013 foi marcado por um conjunto de alterações, mas também por declarações de intenções, que produziram impacto nas organizações escolares e deixam marcas para os próximos anos. O quarto texto desta série de cinco aborda, de forma enunciativa e telegráfica, mudanças anunciadas ou concretizadas com impacte na regulação do sistema educativo.
Na transposição ou tradução de um determinado termo de uma língua de partida para uma língua de chegada, sempre que a raiz da palavra da língua de origem permanece inalterada, podemos, na língua de chegada ter uma “naturalização” ou um “empréstimo”. Se, por exemplo, em vez de traduzir o verbo inglês “print” pelo português “imprimir” o fizer pelo termo “printar”, estou a “naturalizar” a palavra da língua de partida, com flexões e adaptações próprias da língua de chegada (português); se, em vez disso, usar a expressão “fazer um print”, mantendo inalterada a palavra da língua de partida, então uso um “empréstimo” do termo (fenómeno crescente – veja-se “chat”, “web”, “think tank”, “spread”, entre tantos outros).
Várias medidas anunciadas em 2013, com efeitos práticos em 2014 e anos subsequentes, provêm de experiências aplicadas ou em curso noutros países.
Os “cheque-educação” (ou serão “cheque-ensino”?) assentam num modelo de mercado competitivo, no qual habitualmente se adotam políticas de financiamento per capita e se promove a escolha dos pais através de escolhas mais abertas nos estabelecimentos escolares, análogo ao do mercado comercial. De acordo com Glatter (2008)[1], “O foco principal dentro do sistema, o centro de gravidade (…), não é a escola em concreto, mas sim a arena de competição – geralmente, escolas agrupadas numa determinada área geográfica competem entre si para obterem alunos e financiamentos. Estas arenas variam muito, dependendo de fatores como a natureza socioeconómica da área e a sua densidade populacional. Em algumas áreas mais vastas, pode não existir qualquer arena de competição”.
Michael Apple e Gerald Bracey[2] enunciam vantagens e desvantagens da adoção dos “vouchers”. Entre as primeiras, contam-se a opção por melhores escolas, o aumento da diversidade de oferta, a pressão sobre a melhoria da qualidade e o acesso a melhores estabelecimentos de ensino. No campo das desvantagens, nomeiam a deslocação de financiamento e sua diminuição para as escolas públicas, a tentação de seleção de alunos à entrada, os efeitos negativos sobre professores, direções e alunos, o risco de minoração de prestação de contas (“accountability”) e de autonomia para as escolas privadas.
O exposto é congruente com a ideia de criação de novos estabelecimentos de ensino como alternativa ou em competição com os existentes, sugerindo inspiração nas “free schools” inglesas e nas “charter schools” dos Estados Unidos da América. Joaquim Azevedo (2011)[3] alertava para a radicalização e agitação de fantasmas e medos, como a daqueles que utilizam a “(…) retórica política maniqueísta e facilmente assimilável [e que] defendem que para lá da regulação institucional realizada pelo Estado está sempre a mão do mercado, a mercantilização da sociedade civil. A atuação atomizada e fragmentada dos protagonistas, a privatização progressiva do bem público educacional, o neoliberalismo triunfante e a desunião nacional” (p. 200).
Até que ponto será possível afirmar que estamos a trilhar um percurso que nos leva de um sistema educativo para um sistema de estabelecimentos escolares? Se o resultado for o da desigualdade crescente e da segregação social, que Stephen Ball[4] identifica como uma das consequências da introdução do sistema das “free schools”, até que ponto ficam as comunidades impedidas de escolha das “suas” escolas?
Retomando a ideia inicial, faltará saber se estamos com medidas pensadas para serem “naturalizadas” ou “emprestadas”.
Álvaro A. Santos
[1] Glatter, R. (2008). Schools and schools systems facing complexity: organizational challenges in “As Escolas Face a Novos Desafios”. Lisboa: Inspecção-Geral de Educação.
[2] Apple, M. & Bracey, G. (2001). School Vouchers. Disponível na Internet em http://nepc.colorado.edu/files/cerai-00-31.htm, consultado em 29 de dezembro de 2013.
[3] Azevedo, J. (2011). Liberdade e Política Pública de Educação – Ensaio sobre um novo compromisso social pela educação . Vila Nova de Gaia: Fundação Manuel Leão.
[4] Ball, S. (2013). Free schools: our education system has been dismembered in pursuit of choice, disponível em http://www.theguardian.com/commentisfree/2013/oct/23/education-system-dismembered-choice, consultado em 29 de dezembro de 2013.