“Se eu pudesse comprar as explicações, eu pagaria para perdê-las.”
Augusto Montor
Eu estava tão perplexo que decidi dar início a um sonho. Trata-se de um refúgio. Reconheço que não é um ato de grande coragem, mas nem sempre devemos querer ser heróis, sobretudo quando não nos é exigida coragem ou ousadia e tão pouco envolvem perigo. Como as palavras são um incómodo para quem quer sonhar, calo-me e dou de imediato início ao sonho.
Eu era um rei: justo, à dimensão do meu sentir; sério, em razão do meu juízo; dedicado, à luz da minha entrega; competente, aos olhos das minhas habilitações. Tinha quatro ministros e vinte súbditos, um reino pequeno ao alcance de um relance de olhar. E, no entanto, dele tinham saído, outrora, caravelas para descobrir mundos novos, uma outra conversa que se mistura nesta porque nos sonhos a lógica é outra, a cronologia não segue os trâmites.
No centro do poder, estava eu. Os meus súbditos mergulhados nas águas, com cabeças de peixe, espreitavam à superfície, como ensinou o Padre António Vieira, mais atentos ao que eu dizia do que às palavras que pronunciava. No meio da minha arenga, uma velha mulher, travestida de peixe-gato, elevou a sua voz mais alto do que a minha, confrontando-me com um ato ilícito que eu cometera ainda no tempo em que era príncipe. Gesticulava a velha, acenando com fotografias e jornais, onde a tinta desbotava por efeito das águas. Olhei-a com a complacência e a condescendência que só os sonhos permitem e balbuciei uma explicação que a minha realeza deu por plausível apesar de sucinta e lógica apesar das omissões. Os súbditos, sufocados pela falta de ar que a cabeça emersa lhes provocava, agravada pelas minhas decisões que seriam bem menos dolorosas se pudessem gozar de atos ilícitos similares aos de que a velha me acusava, vociferavam gotas de água impróprias para consumo.
Recolhi aos aposentos reais e ordenei aos meus ministros que se dirigissem à turba e respondessem à impertinência da velha, travestida de peixe-gato, e aos demais que manifestavam insatisfação.
De repente, eu mesmo era um ministro, assumindo a função de que eu próprio me encarregara. As perguntas choviam de todos os lados e as bocas dos vinte súbditos suplicavam uma explicação.
Avançou o primeiro dos ministros, respondendo de forma muito clara à primeira pergunta: «tenho muito gosto em pertencer a um reino governado por Sua Alteza, o Rei». Depois o segundo, esclarecendo a segunda pergunta, de forma igualmente clara: «tenho muito gosto em pertencer a um reino governado por Sua Alteza, o Rei». O Terceiro acrescentou, em resposta à terceira interrogação: «tenho muito gosto em pertencer a um reino governado por Sua Alteza, o Rei»
Quando chegou a minha vez, ia falar, «tenho muito gosto,…» mas calei-me, sobressaltado. Voltei a ser o rei. Vi as águas tingidas de vermelho, mas não consegui descortinar se era por efeito da vergonha ou da raiva, porque entretanto acordei.
Antero Afonso