Eu vejo o sonho como uma idealização do possível e não como um projeto ideal do impossível. Pelo sonho ganhamos coragem para ser. Sem o sonho somos apenas uma pequena parte do que poderíamos ser ou seja não somos inteiros.
No ano letivo que agora termina tive (tenho!) uma aluna que tem um sonho. Um sonho que não é grande mas para ela é um grande sonho: ser veterinária. No rosto e nas palavras são evidente o seu entusiasmo e paixão quando fala desse sonho.
Às vezes a vida é justa. Dá-nos os trunfos e cabe a nós jogá-los. Então a forma como ganhamos ou perdemos o jogo da vida depende do nosso mérito. Outras vezes, demasiadas vezes, a vida não é justa e todas as cartas que nos dá são apenas cartas. E é difícil jogar assim, principalmente num mundo onde muita gente faz batota.
Esta simpática e sonhadora adolescente nasceu com menos trunfos do que merece. Tem um problema degenerativo na visão. Irremediável. Tem sido doloroso testemunhar como ela vai perdendo acuidade visual progressivamente. Tem tido apoio para aprender Braille embora ela demonstre alguma rejeição nesta aprendizagem, pois para uma adolescente é muito difícil aceitar o “nunca mais” e o “para sempre” e é isso que as aulas de Braille significam para ela.
Tudo se tem, também progressivamente, tornado mais difícil para ela e para os professores. Nas disciplinas de caráter experimental a parte prática é agora, para esta aluna, potencialmente perigosa. Mas ela insiste que quer participar. E os professores angustiados por não lhe poder proporcionar esta forma de aprendizagem vão inventando outras formas de participação que apenas mascaram o que ela não quer entender.
As disciplinas teóricas também estão a ser afetadas. Ela precisa de uma potente lente de aumento (que se recusa a usar na aula) para, por exemplo, fazer os exercícios na aula de matemática. Os professores dão-lhe todos os materiais e documentos de estudo em letra maximizada mas tudo isto são diferenças que lhe custam aceitar. E sofre. E todos sofremos com ela. No entanto estes são “apenas” obstáculos logísticos que enfrenta todos os dias.
Ela tem outros muito mais intransponíveis que vão tornar o seu sonho muito difícil de concretizar. Porque muitas vezes, demasiadas vezes, o sistema educativo não estimula o sonho, mata-o com a realidade dos números. Porque as cotas, as notas de ingresso, os números da conta bancária dos encarregados de educação, os números do conveniente para o mercado de trabalho é que definem o tamanho do que o sonho de cada aluno.
E também porque qualquer ato clinico tem na observação do paciente a excelência do diagnóstico e não poder ver é efetivamente um obstáculo. Talvez intransponível. Foi considerado que é preciso dizê-lo à aluna. Os seus pais não conseguem. Ela fala do seu sonho com uma intensidade e um calor que os magoa e eles, rendidos, calam a sua intenção de fazer regressar a filha ao possível.
Então e se fossem os professores a dizer-lhe” com jeitinho “ que ela não vai conseguir? Num Conselho de Turma falamos sobre isso. Todos concordaram que seria bom para a aluna. Todos assumiram que não tinham coragem.
Esta semana a professora de matemática, que lhe dá apoio pedagógico individual, falava-me da sua angústia quando vê os seus números disformes que saltam as linhas tornando as equações quase impercetíveis. A professora pede-lhe para usar a lente. Uma espécie de pirâmide de vidro um pouco intimidante mas que lhe foi recomendada pelo médico. Mas que ela teima em não usar. Porque para ela é a parede de vidro que a separa do seu sonho.
Penso naqueles pobres de espírito que reduzem o papel do professor ao de técnico de ensino. Que apenas transmite conhecimentos além do cumprimento das tarefas burocráticas. Estes nunca perceberão que um professor é incomensuravelmente mais do que isso.
O professor é também um mensageiro, um arauto de uma mensagem: “acorda o teu sonho e luta por ele. “ Quando o aluno não tem um porque a vida o fez amorfo, complacente com a inércia social que os seus contextos parecem determinar, cabe ao professor mostrar a imprescindibilidade do sonho. Como um caminho para contextos melhores. Aqui o professor assume-se como co-construtor de caminhos, como um facilitador de sonhos.
Mas como pode um professor ser mensageiro da morte anunciada de um sonho? Como se mata a ambição legítima de que esse sonho seja o seu projeto de vida? Como se substitui o projeto de vida que alimenta desde criança quando o sistema educativo tem quase nada para dar em troca?
Ana Paula Silva