«Embora seja ladrão aquele que tenha mãe
Lá tem no meio da luta ternos afagos de alguém.»
José Afonso
Hoje faz-se domingo, as raparigas trazem laços a segurar os cabelos e os rapazes têm os calções um pouco acima dos joelhos. Eu estou sentado ao lado de minha mãe e faço-lhe perguntas só pelo prazer simples de a ouvir. Gosto da sonoridade com que pronuncia as palavras e do abanar lento da cabeça, quando alguma delas merece reprovação. Despoleta, dentro de mim, o eco que vem do início do tempo, aquele tempo em que me deu à luz, um tempo difuso, disperso e, incontornavelmente, carregado de emoções.
A voz da mãe, qualquer mãe, é uma linha de horizonte que nos enquadra e nos situa, que vai desde o princípio do cordão umbilical até ao mais infinito dos futuros que provocam amanhãs. Em cada palavra sua cintila a luz, define-se a silhueta das sombras e resplandece a tonalidade do cristal, numa musicalidade sacrossanta que nos traz a voz do mar e o afago das nuvens acolchoadas.
No seu olhar nunca perdemos a condição de criança. Advogados, zeladoras, assassinos, vereadores, biscateiras, urbanistas, bombeiros, urologistas, calceteiros, traficantes, calafates, tintureiros, dançarinas, terapeutas, despachantes, proxenetas, quiropatas, economistas, fresadores, radiologistas, engenheiros, farmaceutas, prostitutas, professores, guionistas, operários, governadores, oculistas, hoteleiros, narradoras, médicos, humoristas, inventores, marceneiros, jornalistas, ladras, linotipistas, neurologistas e padres e pastores e pedreiros, pescadoras e relatores, velocistas e outros que aqui não entram, todos abandonam o estatuto quando pedem, ou quando recebem, a bênção da mãe, para assumir a circunstância de meninos e de meninas.
A mãe é a maior projecção do passado, uma mágica improvável, um laço que nos liga à vida. Só a ânsia de “dar às aves os olhos a beber”, como diz Eugénio, nos permite desligar dela, ainda que fugazmente, para logo retornarmos, com novo ramo de rosas junto ao peito, em busca do consolo e do conforto. A mãe é a marca da geração e o símbolo da nossa identidade à flor da pele.
Cantar a mãe é acender a luz do sol na noite escura, é colher, na concha da mão, o orvalho matinal, é mergulhar, à superfície das águas, no mar profundo, é percorrer, com a ponta dos dedos, a textura fina da lembrança, é deixar vaguear lágrimas nas palavras do poema, é riscar um traço oblíquo na superfície da lua, é remar no nevoeiro com a transparência dos dias claros, é chorar, de modo permanente, a ausência e a partida, é sofrer, mais do que em nós, com a sua dor, é alimentar, todos os dias, a lembrança e encher os olhos com as fadas dos espelhos do amor.
Celebrar a mãe é amar os velhos de um país e abrir as portas, todas as portas, por onde entrem as crianças que farão de nós um país que não é só de velhos.
Hoje esvai-se o domingo, os rapazes têm as calças compridas e as raparigas as saias curtas e pernas sedutoras.
- Cada uma delas ostenta o desejo de ter um filho - diz a minha mãe, olhando pela janela, no descambar lento da tarde.
Antero Afonso