“Transbordam” também, julgo eu, outros campos até aqui estruturantes do nosso viver social Refiro-me em particular ao que outrora chamávamos de moral, mesmo quando contestávamos “uma” moral aceite, o que inevitavelmente continha a proposição de outras alternativas, na verdade também elas morais. Falo aqui de moral num plano socio-filosófico, como um sistema de regras de agir e conviver impregnados na auto e hétero consciência que se sustenta num corpo de valores partilhados ou consensualizados num coletivo que se chame a si mesmo de civilizado. A moral – ou as morais, com referentes diversos - estabelece limites de bem e de mal, no quadro do tal campo de valores partilhados .
Por isso me ofende – e me assusta - que a moral seja “transbordada” para fora da dignidade que lhe é própria e se tenha nos últimos tempos, e na linguagem banalizada no jargão político e mediático, convertido numa espécie de catecismo financeiro, desconfigurando a sua natureza supra –interesses em favor de uma descarada pseudomoralização dos abusos de um sistema económico-finaceiro em roda livre de excesso e descontrole. Pois tenho de ouvir todos os dias que “merecemos” continuar ou não no euro, que os gregos terão “punições” pelas suas escolhas se acaso não conformes ao dixit dos centros do poder financeiro, que os mercados “valorizaram” ou “condenaram” este ou aquele procedimento, que o “bom comportamento” gerou “ méritos” no país x ou Y,.…Mas que é isto? Desde quando estas agências, ou estas dinâmicas , que são da pura ordem do interesse e da competição económicas, mesmo que eventualmente legítimas, se poderem instituir em imperativos morais, travestidos de normalização “moral” , como se o bem e o mal, esses velhinhos referenciais do humano, fossem afinal trocáveis por vantagens ou dominações de interesses, que determinariam o certo e o errado, quando o que determinam é apenas o que convém a alguns, e nada mais?
Este é ou primeiro campo do eixo de medo de que falo hoje. Não sei se quero viver numa sociedade desconfortável, que esvaziou os significados mais elevados da sua cultura e se domesticou um “bem/ mal “ caseiro, medíocre, interesseiro e iniquo. Cuja fonte é, na verdade , a pura amoralidade – apenas legitimada pelo poder financeiro dominante no mundo
Outra linha do desconforto global a que aqui hoje chamo, à falta de melhor, o eixo do medo, traduz-se para mim na catadupa de episódios de justiça, também aparentemente moralizadores, que no Portugal do último ano, nos inundam de combates ultra heroicos aos escândalos, corrupção, riquezas indevidas, etc ,etc. Muitos provavelmente justos e pertinentes. Mas em cada manhã dou comigo a pensar , algo incomodada – o que terão encontrado hoje?....Perplexa, questiono-me se terei algum coisa contra a justiça, e ainda mais contra a equidade entre ricos e pobres, governantes e governados , iguais perante a mesma lei ...? Não, pelo contrário, lutei por isso toda a vida, e continuarei a dar a cara por tal causa. Mas tenho de confessar que o tom dos dias me desconforta, que por vezes me sinto próxima de tempos opressores diversos, em que se vivia em pânico da última denúncia, da acusação inesperada, da perseguição, da mutilação do bom nome, a que nos parece natural ter-se direito. Tempos em que ser rico ou viver bem era o mal - mas sem cuidar de que todos vivessem tão bem quanto possível. Ou ser conservador. Ou ser comunista. Ou homossexual. Ou, ou….De novo me atinge o som desafinado da pseudomoral, que perverte a mensagem de justiça com que sempre se apresenta.
Pode ser que nada do que tem ocorrido diante de nós ultimamente, a um ritmo de um (mau) filme de aventuras dos anos 50, tenha esse caráter, e espero que seja antes a voz preclara da reposição da verdade e da justiça. Mas o modo continuado deste drama público, concentrado num curto período, mediatizado à exaustão, de todo este afã justiceiro depois de décadas de relativa, ou até excessiva, serenidade, não pode deixar de me desencadear uma reação de desconfiança . Parecem-me Robins Hoods a mais e zelo com fanfarras em excesso, num mundo que, sabemos bem, continua ao nosso lado, cheio de teias e subterrâneos, intocado.
Assusta- me este outro elo do eixo do medo. Porque o “deitar abaixo” faz parte das grandes glórias de todos os sistemas assentes na demagogia, na ditadura e no populismo, seja contra o rico que deixou de o ser, ou o poderoso que perdeu o pedestal. Ou o grupo x ou y que paga as culpas de todos os males da sociedade. Das bruxas aos judeus aos emigrantes e por aí fora... Sociedade que recusa analisar-se e olhar os “7000 milhões de outros” ( exposição notável no Museu EDP em Belém) que são a humanidade que vive em cada um de nós com o respeito que se lhe deve. Apenas por serem/sermos, todos, humanos.
Escrevo no dia seguinte ao massacre do Charlie Hebdo em Paris. E eis que se fecha, sem que eu esperasse - quem poderia esperar? – o meu eixo do medo, ampliado agora a uma escala indizível . Contudo talvez da mesma natureza. Enfermando da mesma gratuitidade dos usos da ideia de bem e de mal. Desfigurados por estre outro “transbordamento” de visões pseudo-morais, carregado de crime e vergonha para a humanidade. Portador, a uma escala que nos impede de não ver, da mesma simplificação aterradora do humano, atrás de uma crença, de um símbolo, de uma raça ou de outra coisa qualquer.
Maria do Céu Roldão