Entrou na sala, cumprimentou sem brilho os alunos e disse: “ Vamos escrever o sumário.” Assim. Sem introdução ou ponte.
Ela não era assim. Era uma professora empática e tentava sempre trazer um pouco de sol àquela sala sempre fria pelo ar agreste de Trás-os-Montes.
Por reconhecer que, naquele dia, ela parecia outra, uma aluna perguntou: “ Está triste professora?”. “Talvez um pouco, reconheceu.”. A aluna quis concluir a sua curiosidade: “Porquê professora?”. Então ela pensou: “ Queres uma lista? Por tudo e por quase nada!” Mas respondeu diplomaticamente: “ É a vida…são as saudades”
No fundo da sala um aluno tentou uma causa provável: “ A professora não gosta da nossa Terra?”. Ainda diplomaticamente, disse: “Sim claro.” Mas as palavras não vestiram com roupas convincentes sua expressão desolada e o aluno resolveu testá-las: “De que gosta mais na nossa Terra, professora? ”. Não sabe se por impaciência, se por catarse ou apenas porque não foi suficientemente hábil para travar o seu revoltado id, respondeu sem pensar: “ Gosto daquela rotunda onde está a tabuleta que indica o Porto!”. Arrependeu-se de imediato. Mais, arrependeu-se à medida que as palavras saíam da sua boca sem as conseguir travar. Penalizou-se e pediu desculpa: “ Desculpem, estava a brincar”. E pensando, rapidamente, como sair menos mal do seu lapsus linguae disse, agora com convicção: “ “Adoro” os sidónios floridos do jardim da praça, gosto muito do pão que se faz aqui, que tem um sabor fabuloso. E as cerejas. Nunca comi cerejas assim. Doces e rijinhas, fazem-me sentir tão bem como o melhor chocolate”.
Na sexta-feira seguinte, como todas as semanas, no fim da última aula pegou no seu saco de bagagem e apressou-se para a empresa de camionagem. Colocou o saco no porão da camioneta, subiu, cumprimentou o motorista de sempre (que “fazia horas” lendo o jornal espalhado pelo volante) e dirigiu-se a um assento. Quando se preparava para sentar reparou que, junto à janela, estava um saco plástico (daqueles que se usam no supermercado) cheio de qualquer coisa e apertado com um nó.
Levantou-se para mudar de sítio, mas o motorista que a olhava pelo espelho retrovisor, avisou: “ Professora não mude de lugar que esse saco é para si”. “ Para mim?”, perguntou . “ Como sabia que ia sentar-me exatamente neste lugar? E quem deixou o saco?”- continuou incrédula. “Porque se senta sempre ai “- disse sem perceber o espanto. Ela lembrou-se que a sua mãe sempre dizia: “Na camioneta senta-te sempre no meio. “ Para a sua mãe este parecia ser o local mais seguro. Talvez ela inconscientemente escolhesse sempre aquele assento, pensou. “ Sim, mas o saco, quem o trouxe? “ perguntou impaciente pois a questão tinha ficado sem resposta. “ Foram dois garotos. Não sei o nome. Disseram que era para a sua professora que todas as semanas ia nesta camioneta para o Porto”.” A esta hora só vai a Sr.ª professora “ disse categoricamente.
Sentou-se. Abriu o saco e viu que estava cheio de esplendidas cerejas. Lembrou-se do que se tinha passado na aula e uma lágrima correu-lhe pelo rosto. Ela tinha direito à sua saudade mas os seus alunos tinham direito ao seu sorriso.
Nas quatro horas que levou a chegar ao Porto foi comendo as cerejas. E em cada uma reiterava a promessa de que por muito que o seu coração chorasse os seus alunos só veriam o seu sorriso.
Nunca soube quem foram os “garotos” que deixaram o saco na camioneta. Perguntou na segunda-feira seguinte. Ninguém se “acusou”. Então agradeceu a todos. Agradeceu sobretudo o que aprendeu. Tinha percebido a mensagem: A vida de cada um, só é efetivamente triste quando não tem ninguém ao seu lado que traga um pouco de luz aos seus dias mais escuros; ou seja, ninguém tem o direito de sentir-se triste quando tem alguém, que não podendo controlar o que o entristece, lhe dá “cerejas”.
Ana Paula Silva