Falo do Memorial do Convento, claro. E de Blimunda, cujo nome foi escolhido para titular uma das edições inglesas deste livro admirável. Blimunda - essa mulher espantosa que não só via para além do visível como congregava energias e tinha o dom de as preservar…Para isso correu o reino em busca do último suspiro de muitos moribundos, carregados de emoções e forças…E captou as vozes dos amantes e a alegria das crianças que brincavam nas vielas. E encheu frascos e frascos com essas energias prodigiosas com as quais um padre visionário quis erguer – e ergueu, ainda que por breve espaço - a Passarola, que recriava o sonho imortal de voar.
Não sei porque Blimunda e Baltasar Sete-Sóis me encheram o imaginário por estes dias. É certo que reli há pouco tempo este livro maior de Saramago. Com paixão igual à da primeira vez. Mas mais enraizada – situada num outro tempo e lugar da minha vida e do mundo em que me é dado viver. Talvez por isso eles me habitam de novo, na metáfora prodigiosa que nos oferecem. Talvez porque nos sentimos todos ávidos de Blimundas que habitem as mulheres e homens de hoje e os façam capazes de ver para além do visível, de inteligir o que nos querem ocultar, de compreender os outros – e contudo fechar os olhos e comer o pão que nos recata a visão, quando o nosso ver se possa tornar intrusivo da privacidade do outro. Blimundas que se reapoderem da força de congregar forças, do poder indizível e esquecido de mobilizar, persuadir, dar voz, e transformar em força pura os desejos, as mágoas, os sofrimentos, as alegrias – a força que pode mudar o mundo. Talvez porque o amor simples de Baltazar Sete Sóis, um soldado pobretana e ingénuo, mutilado em guerras várias que nunca foram as suas, nos traz de volta a pureza das intenções e a incondicionalidade do amor, a espera sem queixume e a confiança inabalável. E igual é o amor de Blimunda que o procura sem descanso depois de ele lhe ter desaparecido. Nove anos o procura. Seis vezes passa por Lisboa. E à sétima encontra-o finalmente. No Rossio , ardendo nas fogueiras infames de um auto de fé, acusado de heresia. Por ter acreditado no Padre Bartolomeu de Gusmão e o ter ajudado a construir a sua Passarola – afinal pela ousadia de sonhar. Pelo seu amor por Blimunda, que passava por ter poderes demoníacos. O mesmo auto-de-fé em que foi morto António José da Silva, o Judeu. E tantos outros cujo único crime foi pensar. Ou amar. O Ou pensar diferente. Ou ver mais longe. Um dos muitos autos-de-fé, vividos em excitada cumplicidade , em êxtase perverso, por todo um povo acossado pela ignorância e pelo ódio irracional. Por tudo aquilo que não queremos de volta, disfarçado nas supostas luzes da pós-modernidade. Que não voltará - porque existirão sempre vontades, que só estão à espera de ser convocadas.
Blimunda olhou-o, ao seu amado queimado vivo. E recolheu a sua vontade - porque ela lhe pertencia.
Maria do Céu Roldão