Tocou para sair da minha sexta aula do dia, a primeira de um bloco de duas do décimo segundo ano. Percebi que precisava de um pouco de silêncio. Decidi ficar na sala de aula para uns minutos só meus. Nem a bela maçã que me esperava no cacifo me entusiasmou. Sentei-me na secretária e quando me preparava para fechar os olhos e deixar-me fluir no nada, um pequeno grupo de alunos regressou e perguntou-me: “ professora vai ficar na sala? Está frio lá fora, podemos ficar consigo?”. Há dias assim: o que queres e o que tens não são amigos…
“Está bem-respondi- mas tentem não fazer muito barulho. Preciso de um pouco de serenidade neste intervalo pois hoje o dia, para mim, é longo.”.
Como se as minhas a minhas palavras não tivessem sido ouvidas, uma aluna perguntou-me quando era a reunião de avaliação da turma. Ao abrir o meu computador para verificar, o ecrã escuro foi substituído por uma extraordinária fénix no centro de uma explosão de cores vivas e refrescantes.
“ Que espetacular o seu ambiente de trabalho professora. O que é? É um pássaro?”-perguntou a aluna.
“Sim, é um pássaro mitológico chamado fénix que tinha uma particularidade: quando circunstâncias adversas a destruíam, ela, pouco tempo depois, renascia revigorada e pronta para novos desafios. “ Todos admiraram a sugestiva figura. Outra aluna pediu:
- “Professora pode enviar-me a imagem por mail? As cores são fabulosas, foi por isso que a escolheu?”.
- “Para ser franca escolhi esta imagem porque, para mim, simboliza o que é um professor: termina todos os dias o seu trabalho esgotado, consumido, mas renasce ao outro dia renovado e pronto para novos desafios”- respondi.
- “ Professora, às vezes, deve ser muito difícil. Há alunos que são mesmo “beras … e também tantos materiais e testes para fazer e corrigir….”
Antes que pudesse dar a minha “versão” do difícil, um aluno do grupo acrescentou:
-“ A minha mãe diz que não era professora por dinheiro nenhum… diz que para aturar dois (eu e o meu irmão) já é preciso muita paciência quanto mais uma data “deles”! Mas o meu pai diz que é um emprego “santo”: pouco trabalho e muitas férias…”
Comecei logo a sentir aquela coceira que nos impele a responder sem ponderar, usando apenas a vontade quixotesca de defender a honra, mas o cansaço, neste caso, foi um excelente condimento reflexivo:
-“ Antes de te dizer o que é ser professor, queria perguntar-te, se não te importas, qual profissão dos teus pais?”.
- “ A minha mãe trabalha numa loja e o meu pai é mecânico”.
- “Muito bem. Agora vejamos: a tua mãe conhece bem as dificuldades em comunicar com todo o tipo de pessoas e como, apesar de nem todas serem educadas ou cumpridoras, deve tentar, todos os dias, fazer o melhor possível para que a loja em que trabalha seja um local onde se quer regressar. Ela sabe que é difícil, sabe que, por vezes, tem de fazer grande esforço em controlar a raiva perante as injustiças mas sabe que mesmo assim tem de sorrir e seguir em frente. A tua mãe tem dois filhos e sabe como, mesmo gostando muito deles, tem de ser exigente e, por vezes, tomar decisões desagradáveis. Ela percebe o lado menos bom do professor mas ignora o lado bom. Já lá vamos. Agora vamos ao trabalho do teu pai, que é um trabalho essencial, que eu respeito muito, porque nunca o saberia fazer. É um trabalho que exige muita responsabilidade e competência. Por isso compreendo que ele fique zangado quando ouve pessoas a partilhar o preconceito (que eu não partilho) de que é preciso desconfiar dos mecânicos. Que querem, apenas no conserto de um automóvel, ganhar o dia. Eu nunca diria isso. Acredito, por princípio na honestidade de todos. Presumo que os mecânicos trabalham muito para ganhar a sua vida. E do que fazem os mecânicos, sabem os mecânicos.
Assim é preciso que digas ao teu pai, que da vida profissional dos professores sabem os professores. E que esta professora te disse que ao contrário das “santas” profissões que começam quando se chega ao trabalho e acabam quando de lá se sai, é uma profissão leva todos os dias o trabalho para casa e mas não pode levar a casa para o trabalho, pois tem de “pensar” a tempo o tempo inteiro nos seus alunos quando está na escola. É uma profissão que preenche os dias e “rouba” noites e, por vezes, mesmo dias de descanso. A aula é apenas uma parte desse trabalho que, para os que não conhecem a profissão, é percetível.
Quanto às férias, o professor tem as mesmas que todas profissões. E ainda bem. Estás a imaginar a tua vida sem as férias dos teus pais? Se a confusão é pensar que os professores têm férias depois de terminadas as aulas, essa conclusão é mais um preconceito. Quem assegura que o ano termine como é preciso, com os exames e todas as tarefas burocráticas que é necessário fazer? Quem garante que, quando os alunos voltam à escola esta esteja pronta a recebê-los, organizando turmas, horários, planeamentos? “
Olharam para mim, estranhando a preleção longa de um só folego, mas o olhar mostrava concordância.
“Agora voltamos ao princípio. O que faz um professor mesmo cansado renascer todos os dias? Sentir que esta é a profissão que escolheu e que não trocava por outra. Quando discutirem com os vossos pais se uma profissão é boa ou má não se esqueçam que não depende do que se faz mas porque se faz.
Porque só há dois tipos de profissão: a que surge da oportunidade (a que calhou na sorte de cada um como uma forma legitima e honrada de ganhar o seu sustento) e a que se procurou, a que se conquistou por ser a forma como desejamos ganhá-lo. No segundo caso a sorte recompensa o investimento num percurso, num curso. Só a vontade de alcançar um sonho justifica o esforço. Ser professor não é um emprego fácil, não é um emprego “santo” mas é um emprego para o qual vale a pena renascer todos os dias. Porque das muitas coisas que podemos dar e receber dos alunos, ainda temos alguns” bónus” como o que resultou desta conversa: ensinar a jovens como vocês que antes de falar de uma coisa devemos conhecê-la e sobretudo percebê-la, senão não é opinião é preconceito.