Antero Afonso, in Obras por publicar.
Imbuído pelo espírito de Natal, deitei-me numa manjedoura e acomodei-me por entre as duras mas reconfortantes palhas. Fiquei quieto a olhar o céu e a ouvir, ainda que indistintamente, o caminhar lentos dos camelos. Em minha mente nasciam fragmentos incompletos de mirra, de incenso e de oiro e enunciavam-se os nomes dos três reis magos, desejosos para me conhecerem.
Entrou minha mãe e tomou o seu lugar, à minha direita. Trazia nas mãos, um minguado presente. Ficou a olhar-me como se observasse uma luz nascida do nada.
Imaginei S. José, a vaquinha, o burro, a ovelha e a estrela. Convoquei em meu auxílio, sem qualquer ordem para evitar ofensas, a minha mulher, a minha filha, a minha irmã, o meu cunhado e a minha madrinha. Deixei que entrassem à vez e ocupassem os seus lugares. Todos eram portadores dos presentes prometidos.
Lá fora, por detrás da vidraça, nevava, em homenagem a Pessoa, que assim definiu o Natal. Dentro, havia o aconchego e os sentimentos profundos.
Comecei a ficar impaciente, à medida que o tempo passava e os presentes se amontoavam ansiosos por serem abertos. Quando os primeiros raios de sol despontaram, iniciei o processo de desconstrução da realidade construída, e fiz sair, uma-a-uma, as personagens que criara. No final, sentei-me na manjedoura, olhei a brancura da minha pele, a exiguidade das palhinhas com que me cobrira, e comecei a duvidar se alguma vez aquela cena se teria passado. A dúvida e a indecisão foram acalmadas pelas oferendas que se encontravam aos pés da manjedoura. Ansioso, desatei a desembrulhar um-a-um os presentes recebidos: - minha mãe deixara-me o valor do corte que tivera na pensão de viuvez; - minha irmã, o montante equivalente ao corte na sua pensão de reforma; - minha mulher deixou-me uma nota equivalente à perda real do seu salário, por se encontrar no ativo; - minha filha ofereceu-me a precariedade do seu emprego; - meu cunhado a sua situação de desempregado; - minha madrinha, uma nota com o preço dos cuidados de saúde e dos medicamentos que a avançada idade lhe exigia.
Retirei o cabelo da frente dos olhos, porque me circunscrevia a nitidez da perceção.
Reluzia, por abrir, o embrulho dos três reis magos. Retirei o laço, desdobrei a folha, abri a caixa, que continha uma segunda e esta, que continha uma terceira. No fundo, uma nota de crédito: - a mirra, o incenso e o oiro tinham sido utilizados para pagar os juros da dívida do empréstimo!
Uma voz, saída não sei de onde, vinda não sei de quem, reconfortou-me: - Hoje, estamos muito melhor, meu filho! Estamos no bom caminho.
E, apesar disso, nunca mais quero sonhar com o natal.
Antero Afonso