que é o investimento certo para o futuro. E a professora de História garante que, desde a sua criação, a escola foi um instrumento de mobilidade social; que os títulos académicos democratizaram a vida e vieram substituir a estratificação de sangue. Grande invenção, a escola, disse ela. E acrescentou que o
passado nos ensina que a escola é uma passagem, o tempo de preparação para a vida ativa, para o futuro risonho e feliz. E que, por isso, era necessário o sacrifício, o esforço. Nada dessas modernices da compreensão crítica.
Decorar as matérias, respeitar as regras da pontualidade, da assiduidade e do respeito pela autoridade se quiséssemos ter boas notas e entrar na universidade ou, caso se não entrasse, se tentar um bom emprego. Com o capital relacional que a escola também gera. E a professora de Português lembra, na aula logo a seguir, que é preciso conhecer o narrador autodiegético e heterodiegético, os modos de expressão literária, as cantigas de escárnio e maldizer e as de amigo e de amor porque a literatura é a morada
do ser, a revelação do mundo. E que quando fôssemos adultos haveríamos de compreender a sua importância cultural na afirmação da identidade cultural e linguística.
Tenho 15 anos. Durante 31 horas por semana recebo o saber que me promete uma vida futura risonha e feliz. Ainda ontem o professor dizia que o Latim era a base da
estruturação da língua, do raciocínio, e se quiséssemos um dia trabalhar em qualquer área profissional da comunicação, do direito, etc., tínhamos de aprender as declinações, o Rosa, Rosae.
Procuro concentrar-me no meio dos discursos intermináveis. De vez em quando, uma aflição cresce no peito e é quase uma asfixia. Ainda anteontem, quando estava sozinho em casa, o meu pai comentava com um amigo (ou foi na televisão?) que o mundo moderno esmaga o homem com a precariedade de
todos os horizontes. O “globalitarismo”, a deslocalização, a precarização de todos os vínculos, o desemprego massivo – ele disse. Não percebi o que ele disse, mas senti um desconforto enorme. E então fechei-me no quarto a tocar
desesperadamente viola e a tentar perceber o suicídio do meu ídolo Kurt Cobain.
Procuro concentrar-me. As provas globais estão a chegar e são sobre a matéria toda. Dizem-me que tenho de ter um plano de trabalho, um método de estudo, se não estou tramado. Que as provas globais são muito importantes para medir os conhecimentos que conseguimos decorar. Procuro concentrar-me
na descoberta de um plano e de um método. Procuro nos arquivos da memória esse saber e não o encontro.
Vagueio à volta de mim. Ligo o computador e na pasta do meu pai há um texto com o título “Sem tecto, entre ruínas”. Carrego no cursor e aparecem “teses sobre o sem-sentido da escola”. E vou lendo “toda a preparação escolar para a vida activa será um fracasso se a organização social e a organização do trabalho não se reorganizarem de modo a darem um sentido diferente à
vida”; (...) “há uma crise estrutural de motivação nas escolas secundárias e a organização económica tem certamente a ver com isso”; (...) “se a vida ‘activa’ não oferecer perspectivas de promoção, os alunos e os professores dificilmente
acreditarão no sentido da vida escolar”; (...)“viver alienado no tempo presente em troca de um tempo futuro pleno e radioso é uma mistificação insidiosa”. De maneira que encerrei o texto e abri para um jogo de futebol.
Mas logo o meu pai me chamou. Se eu não tinha de estudar. Se não tinha de me preparar para os testes de História e de Filosofia. Abri o livro Pensar a História e fui relendo a formação da sociedade senhorial e vassálica, a consolidação
da ordem feudo-senhorial, os particularismos portugueses do regime senhorial e feudal: o predomínio dos grandes senhorios monásticos, o senhorialismo monárquico, etc. Fui relendo, olhando o passado com o coração no presente. Depois peguei no livro de Filosofia e li que “o mundo alterou-se tão
rapidamente que o homem tem dificuldade em acompanhar o ritmo da mudança na economia, na política, nas comunicações, nos valores e no estilo de vida”. Que “resistimos a mudar, receamos a incerteza, mas a História não pára”.
Pois. Não pára. E para onde vai? E para onde é que eu vou? E que faço eu aqui, nesta tarde cheia de sol, sozinho em casa, a mergulhar em séculos e séculos
de saber? Onde poderei ler o sentido da minha adolescência, a confusão da minha respiração? Onde poderei encontrar as respostas para as minhas inquietações? Onde?
Tenho 15 anos. Tenho 10 anos de escola. Esmagado pelo vazio da incerteza. Pelo tédio de não perceber. “Sem tecto, entre ruínas”.
José Matias Alves
(texto escrito há cerca de 20 anos, à flor da pele. Republico-o, hoje, com uma larga sombra no olhar)