PRAXE OU PRAGA
Quem circule por estes dias pelas numerosas cidades portuguesas que acolhem pelo menos um campus universitário ou politécnico, depara-se, juntamente com as primeiras chuvas, com espectáculos pouco edificantes de bandos de “caloiros” normalizados em fardetas apalhaçadas sem qualquer graça, com pinturas na cara e nas roupagens, abrilhantadas por motivos de chacota tão criativos como o bacio na cabeça, as orelhas de burro ou os soutiens por cima da roupa., sujeitos a poses mais ou menos ridículas ou humilhantes, comandados por troupes de jovens futuros doutores carregados de fitas, medalhas e etc, ostentando a glória dos seus trajes académicos, e ululantes da glória de mandar, por vezes humilhar ou chacotear – por uma vez sem restrições – um bando de seres humanos normais postos à sua mercê , vá-se lá saber porquê…
Não gosto desta prática a que chamamos praxe… Olho-a mais como uma praga, intrusiva, repetida a cada
esquina, que nos assola em cada Outubro, invadindo ruas, espaços, escolas e pessoas.
No tempo e lugar em que entrei para a Universidade – 1965, Lisboa – nem sombra de praxe se vislumbrava
no horizonte dos jovens principiantes… Era aliás parte do “bairrismo” académico de Lisboa, por oposição à vetusta Coimbra, a recusa frontal de tal tradição tida por arcaica e primária.
Já ultrapassei essa leitura simplista e radical. Já abandonei há muito a minha recusa juvenil dos rituais– de passagem e outros – em favor de uma mais madura compreensão do seu profundo significado simbólico, do papel poderoso de agregador social e cultural que transportam.
Contudo, continuo a detestar –ainda que respeite – o modo como a dita praxe se instalou na vida académica num formato pimba confrangedor, a meio caminho entre o Big Brother e os reality shows de terceiro nível, replicados à exaustão, no mesmo figurino, em cada cantinho dito académico das nossas cidades.
Estou disposta a aceitar que é interessante e até desejável revisitar e ressignificar a coimbrã tradição da praxe, construindo rituais festivos de integração na nova comunidade, uma praxe bem disposta e se possível inteligente e irónica, que teste, brincando – como em muitas “praxes “ informais de outros coletivos, até profissionais, pelas quais já quase todos passámos – o fair play de quem entra, a sua capacidade de se rir de si e de acolher, e se acolher, às práticas de um grupo.
Mas muito raramente tenho visto isso. Pelo contrário, já vi caloiros em lugares solenes das suas universidades , ou pelos jardins de Lisboa ou Porto, de joelhos ou de gatas a obedecer à ordem de gritarem – “Eu sou uma besta!” e quejandas delícias que me dispenso de reproduzir, no melhor estilo do treinamento de comandos e marines (nada académico..e mesmo aí muito discutível); já me recusei a presidir a uma sessão solene da minha instituição em que queriam obrigar os caloiros a assistir de joelhos junto às cadeiras, só retomando os trabalhos (com estranheza dos alunos..”tem algum mal, professora?..”) quando todos estiveram sentados como os seus pares; já vi cenas ainda mais graves de violentação degradante de pessoas. Isto para mim não é praxe, é praga – a praga da vulgarização da mediocridade e de desrespeito de valores básicos das comunidades humanas.
O meu pai que viveu e morreu no século XX, contava que foi praxado em Coimbra nos idos de 30, sendo obrigado a dirigir-se a uma rapariga que passava na Rua da Sofia e fazer-lhe o que ao tempo se designava por uma “declaração de amor”… Posso imaginar o sufoco, também com alguma dimensão de aflição pela exposição aos outros, parte integrante de qualquer iniciação – mas posso reconhecer neste tipo de praxe benevolente alguma graça, ironia, e até certa valia de superação do medo, próprio do neófito. O que em última instância configura a noção fundamental de festa. O ritual de passagem.
As praxes-pragas atuais convocam maioritariamente o pior da relação grupal – a violência, o arbítrio, a dominação, a aniquilação da pessoa como moeda de troca, a perseguição. Um aluno meu que se recusou a ser praxado passou todo o curso marginalizado pelos colegas – que, logo que deixam de ser caloiros-vítimas, passam a militar furiosamente como carrascos-convictos, na réplica mimética do que sofreram para agora o “devolver” a outros.. Ah que sublime poder devem ter sentido os“veteranos” ao puni-lo!.. Prazer que me parece um tanto homólogo do prazer, para mim incompreensível, que devem sentir e ter sentido os inúmeros dominadores que a história nos recorda, e que se permitiram, a seu capricho, decidir sobre a vida, ou a morte, ou outras benesses e punições, de grupos de seus concidadãos, em diferentes tempos e contextos. Pouco edificante para uma escola – a escola por excelência, a universidade.
A etimologia liga a praxe a praxis – uma prática coletiva associada aos valores que a informam, a iniciação a uma regra de conduta. A praxe que temos não me parece de todo um bom retrato da praxis da universidade.
Maria do Céu Roldão