O Dia dos Prodígios
No dia em que escrevo, (24-09) vai a enterrar o poeta António Ramos Rosa. Que escassamente conhecia, confesso a minha culpa. E eis que esta galáxia que é o facebook – para o bem e para o mal - me trouxe em catadupas textos e textos lindíssimos desse homem quase silencioso, dizem que um pouco rabugento, mas atento aos outros, que, como conta António Mexia no Público de 24 -9-2013, recebendo-o em sua casa há muitos anos e querendo mostrar-lhe um filme de Hitchcock numa velha TV que funcionava mal, passou o serão em pé, com a mão a servir de antena humana sobre o aparelho, para que o convidado pudesse usufruir de boa imagem… Primeiro prodígio do meu dia - humanidade e simplicidade num tempo mártir do alheamento, da solidão, da agressividade, da frustração.
Frustração intemporal que de repente nos atinge no tempo de hoje nas palavras tristes de Ramos Rosa no Poema de um Funcionário Cansado, feitas nossas neste Setembro carregado:
(…)
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço
Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo numa só noite
comprida num quarto só.
O poeta morreu. O poeta não morreu. Segundo prodígio: hoje só me apetece ler poesia , aquele fio oculto, misterioso porque fundo, que liga vozes e sentidos para além das individualidades irrepetíveis de cada voz e de cada vida. Da amargura triste do funcionário cansado que hoje também eu me sinto, esbarro, à esquina de uma leitura ocasional, na força quase épica das palavras de Sophia:
Esta gente cujo rosto
Às vezes luminoso
E outras vezes tosco
Ora me lembra escravos
Ora me lembra reis
Faz renascer meu gosto
De luta e de combate
Contra o abutre e a cobra
O porco e o milhafre
E em frente desta gente
Ignorada e pisada
Como a pedra do chão
E mais do que a pedra
Humilhada e calcada
Meu canto se renova
E recomeço a busca
De um país liberto
De uma vida limpa
E de um tempo justo
Sophia de Mello Breyner - Geografia
Terceiro prodígio. O canto e o descanto. A tristeza e a vontade. Os ciclos que não se fecham mas renascem.
Dia dos Prodígios, para mim. Dum tempo e dum país em que, como na aldeia de Vilamaninhos do romance de Lídia Jorge assim intitulado, cada um vive a espera de um prodígio que o liberte, que o religue ao mundo, que reacenda a vontade de viver. Que afinal estava dentro de cada um…
No meu volume velhinho do Dia dos Prodígios, publicado em 1980, há mais dois prodígios que ao revisitá-lo descobri, com a frescura intocada de um primeiro dia: a foto da autora na contracapa é a de uma mulher-menina, doce e frágil como um junco – mas é dela a voz poderosísima e telúrica que nos esmaga até à última página desse romance intemporal e magnífico. E na dedicatória deste meu livro, de que nunca me vou desfazer, alguém me escreveu “Biografia de uma ausência: a memória de ti”.
Nada acaba. Prodígio maior.
Maria do Céu Roldão