REGRESSO A SETEMBRO
Setembro está quase aí. Para mim é da cor do entardecer e cheira a vinho, mosto e fruta madura. Cheirava muito, na minha infância, quando Setembro era um final adoçado das longas férias, passado no Douro, deslumbrada com a azáfama das vindimas que aturdia e fascinava a criança urbana e pouco viajada que eu era. Havia sempre águas de ribeiros em som de fundo, e pequenos caminhos entre dálias enormes e de formas caprichadas que eu achava serem veredas de florestas fantásticas…Diz Kieran Egan que a intensidade sensorial das memórias da infância tem a ver com uma acuidade perceptiva que então teríamos e que, por deixar de ser cultivada à medida que crescemos, socializamos e somos escolarizados, privilegiando outras capacidades e prioridades, se vai esbatendo, perdendo luz, viço e força. O que é uma pena. Castra-se talvez uma fatia maior da nossa capacidade de apropriação do real e de fruição da vida. São pois carregadas de cheiros, sons, luzes e sombras, as memórias que sou capaz de recuperar do tempo obscuro da infância.
Mas outros cheiros e sensações me traz a memória de setembro em cada ano…Lá para o final do mês, começava a azáfama de comprar livros, cadernos, lápis, borrachas…As papelarias eram mundos de cheiros deliciosos – a tinta semeada nas linhas e desenhos dos livros novinhos, o cheiro do papel ainda não usado, liso e brilhante, carregado de promessas para o novo ano, o carvão dos lápis, as borrachas verdes e macias que era maravilhoso desfazer pouco a pouco em poeiras cheirosas, o papel-ferro, verde ou laranja clarinho, com que iríamos forrar os livros, os guaches a esparramarem-se em cores… Tinha nove anos quando num destes setembros adquiri, pela primeira vez, uma lapiseira!.. Era cor-de-rosa, toda reluzente e cheirando a cromado… Recordo exactamente o dia, o local, o senhor que nos atendia, e sobretudo a alegria desse momento… e isto num tempo da vida em que os esquecimentos são uma companhia serena a que já me habituei...
Do mundo olfativo dos preparativos para a escola desprendia-se uma vaga promessa de uma viagem nova em cada ano, uma quase magia de quem se aventura a mais um pedaço de estrada, um bocadinho assustadora porque desconhecida, mas tão carregada de expectativas que o susto se desfazia rápido. Tenho revisitado este sentimento da novidade e expectativa no regresso à escola em cada Setembro, nos filhos, netos, alunos, amigos e filhos de amigos... Curiosamente idêntico, apesar dos saltos geracionais e das mudanças nos artefactos em uso.
Continua a ser uma festa de expectativa o começo da escola, em Setembro… Mais para diante, o ano avança, e as rotinas reconquistam o seu terreno cinzento e neutro, e muito desta alegria se deixa perder na escola…Do“gosto tanto de aprender” que já testemunhei muitas vezes, escorrega-se gradualmente para a lógica do “”tem que ser, para o gostar da escola para conviver, mas em que as aulas são “uma seca”… E parece-me isto tão triste quanto a perda da intensidade dos cheiros e cores…
Não faço parte dos defensores da ludicidade como marca distintiva de qualidade do ensino. Não me agrada a ideia de que tudo na aprendizagem tem de ser divertido e agradável, ou mesmo leve…. para alegadamente “motivar”. Mas não prescindo da convicção de que o esforço de aprender dá muito prazer e o trabalho intenso de ensinar também. De que o nosso trabalho de ensinar reside exactamente em construir os caminhos que otimizem a aprendizagem, lhe dêem sentido e a tornem valiosa, para todos e cada um dos que nos chega em cada Setembro. De que é nesse gosto feito de competência construída a pulso, com esforço, trabalho e por isso mesmo prazer, que reside o coração da escola e do currículo. Um coração algo enfraquecido, à espera de se reconfigurar em modos de trabalho mais realistas e eficazes do que aqueles que vimos reproduzindo com pouco sucesso há quase dois séculos.
No passado mês de Julho, Malala Yousafzi, a paquistanesa de 16 anos baleada – e depois galardoada - por lutar pelo direito das mulheres a ser educadas, afirmou no seu discurso na ONU: “Um aluno, um professor, um livro e uma caneta podem mudar o mundo”.
Palavras que iluminam. Simplicidade visionária... Cheiros de Setembro revisitados.
Maria do Céu Roldão