Muitos recordarão, como eu, este filme amargo e doce em que um grupo de amigos, 20 anos depois dos idos de 60, se voltam a reunir para o funeral de Alex, um deles, cuja morte despoleta todo um fervilhar de memórias, das loucas ou sérias vivência amorosas aos grandes princípios e ideais políticos, das acesas divergências às íntimas cumplicidades, da saudade ao desencanto, da euforia à serenidade ou à amargura, no embalo dos sonhos e da esperança fraterna que cimentaram o grupo.
Recorrentemente na minha vida, a discussão entre amigos, muitas vezes réplica daquele grupo simbólico, carregando a memória de outros Alexes mas os mesmos sonhos, tem ido desembocar no conflito das grandes palavras que gostamos de pensar que sustentam as sociedades em que vivemos. Em muitas dessas amáveis discussões, a ideia mais amada e defendida por mim, e muitas vezes pelas mulheres presentes nos grupos, era a liberdade, versus o argumentário dos “adversários”, quase sempre favoráveis ao predomínio da igualdade… Quase num jogo de palavras, que nos parecia inocente, debatíamos a maniqueÍsta hipótese de ter de escolher um destes conceitos para a sociedade em que viveríamos… E aí se acendia o fervor de cada uma das partes na defesa das suas ideias maiores…. Embora sabendo bem que uma sem a outra não trazem nada de bom, mas juntas podem construir o mundo da equidade possível.
Esta foi afinal a perversa dialética politica e social que atravessou o século XX e as suas clivagens essenciais, e que transportámos – ou nos transportou - para este novo milénio, assombrado nos seus verdes anos por ameaças inesperadas. Porque a História é assim mesmo, não cuida das nossas certezas científicas nem das ingénuas expectativas de antecipação futurista… e lá se vai costurando com os fazeres e desfazeres dos actores, dos interesses e das ideias.
A ambição da igualdade legitimou ditaduras intoleráveis ao preço caro da liberdade individual sufocada – liberdade que eu continuo a colocar no primeiríssimo plano. Mas o liberalismo tout court, reclamando-se supostamente da liberdade, conduziu sempre ao mais ou menos sofisticado domínio dos mais fortes sobre os mais fracos, com requintes maiores ou menores de marginalização, num mundo que já se julgava distante da cruel lei da selva – certamente não assente no valor da liberdade, mas pautada pelo domínio da força e do poder.
Parece-me hoje claro que a liberdade, para ser mais do que uma bonita ideia, tem de instituir a sua própria regulação, de modo a configurar-se na harmonia com a igualdade, O binómio liberdade-igualdade, a que alguns filósofos políticos associam hoje o conceito mais abrangente de equidade, é porventura a meta mais difícil e complexa para as sociedades atuais. Mas a única que se pode reclamar de humanista, seja qual for a matriz ideológica a que se referencie. E não creio hoje que possa continuar a ler-se como uma dicotomia, mas antes como um projecto de construção negociada, lúcida e pacientemente. Em que nunca a liberdade de cada um seja abafada, nem a igualdade que nos faz humanos beliscada.
E aí me ponho a pensar na simplicidade meridiana com que se faz na praça pública, quer a defesa quer o ataque, por exemplo, dos cheques-ensino, seja em nome da proclamada liberdade de escolha, seja na defesa da inalienável igualdade do direito a ser educado. Para os defensores aparece como a possibilidade milagrosa de todos acederem ao melhor, sem restrições financeiras; aos adversários como uma real ameaça à igualdade face à educação que cabe à sociedade garantir como serviço e não como produto de mercado.
Imagino-me pois como uma mãe de subúrbio, com uma escolaridade baixa , escassa informação e ainda menor poder de influência, a desejar escolher para o meu filho uma escola de boa cotação, pública ou privada . E como faria eu esta escolha? Qual o meu campo real de conhecimento que sustentaria a minha hipotética escolha, visto que de facto me garantiam que tal escolha seria financiada? E que aconteceria se, fruto de muitas escolhas otimisticamente bem informadas, a procura da escola X levasse a mesma a, naturalmente, ter de escolher quem aceitava? Quão diferente e quão igual seria este cenário face ao meu caso real, de mãe de classe média que sou e que pude de facto escolher as escolas dos meus filhos? Onde se joga o cruzamento decisivo e frágil entre a liberdade que aprovo e defendo e a igualdade que nos cabe assegurar?
Não concluo que a liberdade deva estar minimamente condicionada ao grau de cultura, ao sexo, ao rendimento, à “preparação” ou falta dela – como hipocritamente se justificava a falta de direito a voto para alguns, nos tempos da ditadura. Ou subjugada aos ditames de uma igualdade imposta. Mas também é desonesto afirmar euforicamente que se ganha liberdade de escolha plena sem que a sociedade e o Estado assumam o seu dever inalienável de intervir na criação de dispositivos reguladores de equidade, que não se reduzam, embora seja um passo, ao financiamento, como no caso em apreço. Porque não se pode escamotear que alguns apenas serão realmente livres, nesses cenários….
Ser educado é um direito e um bem público, nas palavras de Brian Caldwell que subscrevo. Não é apenas um recurso ao dispor da minha escolha (que no limite pode levar alguns a não quererem ser educados… e será que não precisam?...a questão é de escolha?....) - e sujeito à“naturalidade” das regras de mercado. Não significa isso que não se deva investir numa saudável confrontação da qualidade oferecida pelas escolas, e que o cheque ensino não possa ser um bom instrumento. Se integrado num projeto social equitativo e não iníquo.
Talvez a díade das discussões dos amigos de Alex precise urgentemente de ser ressignificada – integrando a mediação do terceiro elemento da tríade histórica – a fraternidade. Que não vai aos mercados. Mas nos faz humanos.
Maria do Céu Roldão