A tensão dos conflitos, quando olhada do sossego de um sofá, através de um écran televisivo, começa a tornar-se assustadoramente banal. Não há dia em que os conflitos mais variados nos não entrem pelos dias, regados com muita vox populi que quase sempre é voz de dramas, ou de emoções violentas, ou de perdas irreparáveis. A morte, servida a frio, e a tragédia dos povos, retratada a uma confortável distância de segurança, num novelo discursivo muito idêntico, constituem um dos obstáculos ao entendimento um pouquinho mais profundo do que vai passando neste mundo que é o nosso. Custa admitir, mas é um facto, que a nossa sensibilidade ao vivido se esbate neste confronto constante com a banalização do drama.
Estava eu atenta à descrição, tragicamente repetida nas últimas semanas deste começo do ano de 2014, do conflito que divide a Ucrânia, quando fui apanhada por alguma coisa que me agarrou. Ou melhor, por duas coisas, de sinal contrário, que me sacudiram do torpor anestésico de espectadora passiva.
A primeira entrou violenta pelos olhos. A imagem que estava naqueles dias a ser mostrada ao mundo era, do ponto de vista estético, hipnótica: a praça da Independência parecia desfazer-se em chamas, no meio de fumo e escuridão, numa visão dantesca, grandiosa e aterradora, da destruição e morte que ali ocorriam de facto. Mas… havia também o som… E o som que ouvi primeiro, como era esperado, era de tiros, explosões e detonações várias. Mas não só… Incrédula, comecei a ouvir alguma coisa mais, primeiro distante, depois num tom cada vez mais nítido, claríssimo, que não coincidia com o esperado de um cenário de batalha campal: cânticos!... Era certo. Alguém cantava. Seriam os combatentes, ou seria música gravada, ou não sei o que seria… A tonalidade era solene e épica, vozes masculinas e femininas em coro, cantos que evocavam a grande cultura do centro da Europa, tão diversa da nossa, e que conhecemos tão mal - eu pelo menos.
O impacto era tremendo. Cantar no meio de uma batalha, ou antes de enfrentar a morte, ou para unir mais as vontades, são fenómenos que já foram vistos, sim. Mas não tanto nos dias de hoje. Em que a morte e o perigo, nestes contextos de luta que dilaceram um certo lado do mundo, são muitas vezes despidos de toda a grandeza e transformados na pura manipulação de seres humanos, arrastados na fé das prometidas primaveras que afinal se esboroam em novas ditaduras, num círculo arrepiante de fatalidade. E contudo sonham. E merecem o sonho pelo qual lutam. Talvez por isso me tenha parecido tão tocante o canto, o canto que se erguia acima do ruído da luta, canto quase místico que parecia dar um sentido àquela tragédia, cujo desfecho também ainda falta ver se será libertador ou não.
Mas houve outro choque… Estava-se ainda longe do clímax da crise que acabou por levar à queda do poder em Kiev. Ainda não se tinha atingido um tão elevado número de mortes como veio infelizmente a ocorrer. Outra vez incrédula, vejo passar, numa das barras informativas, sob a dramática imagem de uma cidade a arder e de uma população desesperada, a informação seguinte: “O Dínamo de Kiev joga na quinta feira!”… Talvez a crença na rotina dos dias ainda estivesse muito viva, talvez no meio de situações muito tensas seja desesperadamente necessário manter uma normalidade de quotidiano, talvez o futebol faça as vezes de muitas outras fontes de esperança e coragem. Talvez…
Mas ainda não me refiz do contraste. Alguma coisa se quebrou na empatia gerada pela imagem, como que uma contradição nos termos. Estávamos mesmo a ver aquela tragédia? Que a tragédia estava lá não tenho dúvidas. Que se lutou e morreu também não. Mas está ela a ser-nos dada na comunicação para que melhor a entendamos? Ou alimenta um espetáculo mediático, assente em mercado de audiências, feito de doses calculadas de desgraça, futebol e morte, como se tudo se equivalesse?
Parece que ando um pouco zangada com a comunicação… De facto. Talvez até a embirrar um bocado demai…..Mas é sobretudo porque me choca a aparente inevitabilidade da sua irracionalidade, quando situada no centro da arena política do mundo. Não porque ela não seja nos dias de hoje um dado central da malha social e cultural. Inelutável, aliás. A história não pede licença para continuar – e este é o tempo da revolução comunicacional, como outros foram da industrial ou da agrícola, ou outras. Mas, por isso mesmo, talvez nos caiba cuidar, de olhos abertos, na nossa intervenção cidadã, com modos de racionalidade crítica, da nova realidade que este extraordinário salto tecnológico trouxe ao nosso tempo. Não sei muito bem como, confesso… Devo lembrar, em minha defesa, que sou de uma geração de utopias….Mas não será possível melhorar a finura da comunicação mediática, encontrar algum equilíbrio, de preferência por auto-regulação, ancorar esta prática social nuclear em referentes de informação sustentada e em propósitos (também) de educação?
Porque (ainda) não desisti da Política - arte e ciência da Pólis - acredito que sim.
Maria do Céu Roldão