Tem-se agitado o mundo dos comentadores ditos políticos com a alegada colagem de algumas vozes de esquerda à descoberta – tardia, segundo eles – da doutrina social da Igreja, revigorada pela ação pública de Francisco, o Papa. Doutrina social que – recordam-nos – vem já pelo menos da encíclica “Rerum Novarum” do Papa Leao XIII, publicada em 1891, no 14º ano do seu pontificado, e que vem sendo persistentemente reafirmada no corpo doutrinal das encíclicas papais ao longo do século XX.
Pois, totalmente verdade no que à doutrina plasmada nas encíclicas se refere. Para não irmos mais atrás. Porque se nos virarmos para o Evangelho, encontraremos, transparente e vibrante, a ideologia da fraternidade, da ação solidária, e do respeito e amor ao outro – o “próximo”, de que nos fala Jesus – “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Mateus 22:39).
Não tem pois que se “descobrir” que esse é o mandato do cristianismo. Mas já se torna menos evidente se descermos dos princípios às práticas oficiais da Igreja. Seremos, “malgré nous”, forçados a notar que a beleza destes princípios se manteve, no plano público, discreta, oculta ou mesmo silenciosa perante algumas das maiores catástrofes humanas e políticas do século XX.
Por isso Francisco, o Papa, tem varrido a cristandade e a humanidade com um salutar vento novo, sim – o vento do desassossego. Feito da inquietação e revolta de ver o tal “meu próximo” vilipendiado, contra todos os princípios que se respaldam no conforto da fé ou da ideologia. Traz no sorriso e na palavra a afirmação de que não basta ter escritos e santificados os princípios – mas é preciso sofrer da angústia da ação, da sede e fome de justiça. Ir a Lampedusa e perguntar “Quem chorou por eles?”. A novidade não está pois nos princípios – mas no agir de acordo com eles. A alguns por isso chamam santos. Mas são afinal homens. Desassossegados.
E eis que nos morre Nelson Mandela. A todos nós. Brancos e negros. Cristãos, muçulmanos ou ateus. Homens e mulheres que viveram o mesmo tempo. E outra vez as vozes se erguem, media fora, refreando ou prevenindo os eventuais excessos… A lembrar-nos da relatividade da figura deste homem agora aclamado como quase “santo laico”.. .. Que nasceu bem colocado socialmente e estudou na Universidade…lembram-nos... Que foi no início favorável à luta armada - vale a pena estudar em que exatos termos - aprende-se muito.. Que beneficiou do fim da guerra fria e da conjuntura subsequente para a sua ação pacifista… Pois foi, quem o nega ou oculta?... há que colocar tudo em perspetiva, sempre, bem o sabemos.
E exatamente por isso, vale a pena erguer a voz para dizer que, por isso mesmo, o mundo se curva perante ele. Pelo que fez e ousou fazer do interior dessa mesma contingência, que nunca negou. Por isso é que é exceção. Porque foi apenas um homem. Ele e a sua circunstância, repetindo de novo Ortega y Gassett. Homem maior de um tempo dramático e de um país escavado em ódio, que não se conformou. Onde tantos outros se conformaram e calaram. Dentro e fora das fronteiras do apartheid. Outro homem que não pôde, nem quis, resistir ao desassossego.
Que se ergueu da sua contingência como um gigante. Não porque seja um herói. Mas porque foi esse homem contingente, feito do tempo e da vida, que – diferentemente de tantos outros – se deixou tomar pelo impulso de não suportar a indignidade, e se ergueu e ousou agir. Desassossegado no interior da contingência que o faz igual a qualquer de nós. E por isso mesmo maior que todos nós.
Francisco e Mandela – dois homens inquietos. De olhar claro e palavra direta. Luzes benvindas no tempo escuro que é o nosso. Que não nos deixarão nunca mais dormir em paz, encostados a uma qualquer boa consciência, plasmada na doutrina ou na ideologia. Que nos condenam a enfrentar, de olhos abertos, o desassossego.
Maria do Céu Roldão