Consumidores vorazes da moda e do fast-food, por comodidade estamos, também por esta razão, a consumir como autómatos notícias já digeridas, informações em segunda mão, normativos irrefletidos.
Pensar para muitas pessoas passou a ser um privilégio que não assumem, para outras um incómodo que só faz perder tempo quando há outros sempre disponíveis para fazer isso por si. Há ainda uma franja de pessoas que a única coisa que pensa é que é inútil pensar.
A informação está à nossa volta, prontinha a usar. Para quê complicar? Perguntarão (retoricamente claro….).
No séc. XIX, num admirável texto, Kant questiona: “vivemos numa época esclarecida?” E responde: “Não, vivemos numa época de esclarecimento….Somente temos claros indícios de que agora foi aberto aos homens o campo no qual podem lançar-se livremente a trabalhar e tornarem progressivamente menores os obstáculos ao esclarecimento geral ou à saída da sua menoridade, da qual são culpados.” (KANT, 2005. p 70).
Dois seculos depois a resposta não seria diferente. Nos nossos dias o campo da informação não foi só aberto, tem as portas escancaradas. As ferramentas para enriquecer o percurso deliberativo das nossas decisões são imensas, a “matéria-prima” com que se alimentam os pensamentos é hoje da melhor qualidade. Então de que continuamos culpados? Ontem como hoje a maior culpa de muitas pessoas é abdicarem daquilo que é a essência da sua liberdade: o seu pensamento. De um pensamento de autor. Para o bem e para o mal. Pois com a liberdade vem a responsabilidade.
Estas pessoas acérrimas entusiastas do “pronto -a- pensar” são, para Kant, seres menores. A menoridade é para ele um traço caraterizador daqueles que parecem ter “a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo”.
Por impossibilidade? Por dependência? Por obediência? Por respeito? Por admiração? Não, Kant é contundente na sua apreciação valorativa: “A preguiça e a covardia são as causas pelas quais uma tão grande parte dos homens, depois que a natureza de há muito os libertou de uma direção estranha, continuem, no entanto de bom grado menores durante toda a vida. São também estas as causas que explicam porque é tão fácil que os outros se constituam em tutores deles. É tão cómodo ser menor. [...] ” Hoje diríamos:” para quê fazer, se podemos comprar feito?”
Com a confeção em série correm risco de extinção as modistas, com as Bimbys os cozinheiros poderão tornar-se anacrónicos. Cabe aos professores encetar uma luta “ecológica” para que o pensamento não se reduza ao mínimo e (quem sabe?) um dia só pensem os eleitos.
Mostrar que pensar é uma forma de afirmação pessoal, que é uma ilha para não submergir à versão conformada e que é a única maneira de construir um destino, é hoje uma tarefa educativa. Diria mesmo uma missão estratégica (e visionária) dos professores para a qualidade da sociedade de amanhã.
Estimular (ensinar) os alunos a procurar os fundamentos ao ver para além do óbvio, a perceber para decidir, a analisar para escolher, a ser e não apenas existir, deve fazer parte do currículo não escrito de qualquer disciplina.
De tudo que a educação oferece ao processo de desenvolvimento de uma criança, preparar cognitiva e eticamente a sua transição da “heteronomia” (quando os outros pensam por si e as regras são impostas e obedecidas sem reflexão sobre o seu carácter necessário) para a “autonomia” (altura em que um individuo orienta a sua ação pela reflexão ética da norma moral, tornando-se, num certo sentido, auto legislador da sua construção cívica e profissional) é talvez a sua função mais socialmente útil.
O texto de Kant, em referência, faz a apologia de um pensamento, de uma razão que deve ser usada não apenas como um direito conferido por uma liberdade que é “ a mais inofensiva entre tudo aquilo que se possa chamar liberdade, a saber: a de fazer um uso público de sua razão em todas as questões” mas como um dever de humanidade, como uma afirmação de pessoalidade. Como um passaporte para a maioridade.
Pensar é, pois, preciso. Mesmo quando, como acrescenta Kant, ouvimos “ exclamar de todos os lados: não raciocineis!”. Recusemos o instantâneo, o pensamento empacotado. Recusemos a existência que se reduz a isso mesmo. Ensinemos os alunos a usar o pensamento para construir uma sociedade pensante.
Voltemos à receita caseira e à dieta mediterrânea que deu ao mundo os pensadores que romperam com o mito. Não permitamos que pensar se transforme ele próprio numa recordação mitológica.
Pensemos no conselho de Kant que releva do texto citado:
Sapere aude (tenha a coragem de usar o seu entendimento).
Ana Paula Silva