Gaspar, Belchior e Baltasar fazem parte do nosso imaginário desde a infância e parecem continuar a ser, para os miúdos do digital, atrações fascinantes do grande teatro que se recria em cada ano no presépio. E todavia a referência estes personagens, vindos da Arábia atrás de uma estrela para adorar um menino carregado de esperanças, ocupa umas escassas linhas no Evangelho de Mateus: «Entrando na casa, viram o menino, com Maria sua mãe. Prostrando-se, o adoraram; e abrindo os seus tesouros, entregaram-lhe suas ofertas: ouro, incenso e mirra. Sendo por divina advertência prevenidos em sonho a não voltarem à presença de Herodes, regressaram por outro caminho a sua terra.» (Mateus 2:11-12).
Mas estas figuras lendárias transportam com eles uma carga simbólica que vai para além do ouro do incenso e da mirra. Trazem com eles todo o exotismo de mundos diferentes e longínquos – os camelos, as vestes sumptuosas, os turbantes e…a sua própria diferença: do sábio e idoso Gaspar ao negro Baltasar. E também uma sabedoria que se lhes atribui um pouco ao acaso (talvez a história tenha nascido de um grupo de astrólogos orientais que nem eram reis..) mas que simboliza uma ideia da universalidade do conhecimento – e das fés – para além dos muitos povos escolhidos que s diferentes religiões têm sucessivamente delimitado ao longo dos tempos. Como que símbolos da proclamada ecumenicidade do cristianismo – um lugar maior da sua diferença - que se jogava desde o primeiro momento da natividade.
Os nossos filhos e netos continuam a extasiar-se com a pompa, o exotismo e a altivez daqueles reis, misto de sábios e de mágicos, Magos, que caminham atrás de uma estrela e se ajoelham para oferecer a um bébé pobre e cheio de frio as suas sumptuosas e simbólicas oferendas. Em torno destas figuras desenvolveram-se inúmeras representações, na Iluminura, , na pintura, na ficção, que chegaram até aos nossos dias.
Nesta fase da minha vida, em que me encontro muito seduzida pelas releituras, retomei – e estou nesse processo – a leitura de “Gaspar, Baltazar e Belchior” de Michel Tournier, já publicado há alguns anos ( é de 1992 a minha edição, da D. Quixote). E redescubro com deleite a recriação livre que este escritor, de que muito gosto, faz da personagem que vive em cada um dos reis, cada um torturado pelos seus demónios – o poder, a sabedoria a, a negritude. Abre assim o capítulo que dá voz a Belchior: “Sou negro, mas sou rei”. E este rei negro, cumulado de riqueza e poder, sofre a tortura de um amor rejeitado, na figura da escrava branca que ele ama apaixonadamemte, que com ele dorme, porque a isso não pode recusar-se. E eis o sofrimento do homem, dentro da realeza e da negritude - rei negro em dor, confrontado com a rejeição impenetrável da escrava, que obedece, mas manifesta a sua recusa, em silêncio, vomitando em cada noite, após o amor...E assim vai o autor tecendo o drama dos personagens e as suas tramas, com uma escrita não genial, mas muito expressiva, carregada de uma narratividade que nos prende.
Mas o que mais me atrai neste livro revisitado - ainda lá não cheguei, mas antecipo…esse é um dos prazeres da releitura… – é a figura fascinante de Taor, o 4ª Rei Mago. Taor, como os outros, pôs-se a caminho naquele inverno frio, seguindo a estrela em busca da mensagem divina. Mas Taor é um pouco imaturo…Muito guloso, delicia-se com tudo o que seja doce e fascina-se facilmente com pequenos eventos, distrai-se com tudo o que se passa à sua volta. De distração em distração acaba por se desorientar e afasta-se da direção da estrela. Contudo, prossegue a busca. E à medida que a viagem continua, eis que o homem que ele é não sabe - ou talvez não queira - resistir ao chamamento da vida que pulula em seu redor e se atravessa constantemente no caminho. E Taor perde-se, já não pela irrequietude inicial, mas por se envolver num sem número de experiências, de percursos divergentes, de resposta a apelos, de paixões, de sofrimentos, que vão enchendo os anos longos e ricos da sua viagem, perdido o rumo da estrela de Belém. Metáfora brilhante de quem, como quase todos nós, percorre, a vida em busca de algo que a transcenda, mas que só no quotidiano dos dias, no olhar e no ouvir, no viver, sofrer, amar, no grande teatro do mundo, vai encontrar a única transcendência possível – a do humano.
Taor vem a encontrar-se com Jesus . No Gólgota, na tarde da crucificação.