Mas a leitura dos testemunhos, alguns impressionantes, deixou-me a contas com uma nova vaga de questões mais intrincadas. Questões que se prendem com a condição feminina para além do estatuto jurídico e político, que me levam ao interior do ser mulher, viver e sentir no feminino - seja lá isso o que for…- neste mundo que é o nosso, mutante e imutável, surpreendentemente. Alinho algumas dessas reflexões como questões a colocar as mulheres e homens, jovens e não jovens, que em 2014 se reclamam legitimamente de uma sociedade mais igual e mais livre no que ao género se refere.
Um dos testemunhos que li num órgão da imprensa escrita faz parte de uma série de relatos de situações vividas, organizadas pelo jornal no interior do mote mais amplo da Liberdade. Tratava-se de uma senhora, hoje sexagenária, que contava a sua história familiar nas últimas décadas, casada e com filhos, vítima de agressão física continuada do marido. O processo de que ela dá conta, num registo muito simples, é uma ode à coragem : é a história da sua libertação, tendo finalmente decidido separar-se e vivendo hoje tranquila, sozinha, com um pequeno rendimento de trabalho, mas feliz e livre. Coragem admirável, que aqui reverencio. . Que me perturbou então nesta narrativa? É que ela afirma repetidamente que, contudo, nunca quererá divorciar-se, o marido foi uma escolha de amor para toda a vida, o que se fez tem que se manter….ela nunca amou nem quis amar mais ninguém, e… perdoa-lhe. Está tudo bem, como se alguém nesta história - ELA - não tivesse sido espezinhada, humilhada, injustiçada por nada (nunca se sabia por que motivo era a agressão, ele batia ainda mais quando ela lhe perguntava o que tinha feito..) .
Que se continue a amar alguém odioso eu posso compreender (ainda que mal..), faz parte dos mistérios insondáveis do humano. Mas que se ache natural e desculpável, mesmo quando se ousou ganhar a liberdade? – “ele é assim…”? Nossa escolha, afinal….ao que parece, e mais uma vez, culpa nossa…Será que nos educaram e aculturaram de tal forma que se chega a naturalizar em cada uma de nós a condição inevitável de vítima, travestida do enaltecimento do amor como destino único da mulher? Como branqueador e sublimador de todos os desvios, agressões, desrespeitos? Porque me vem ocorrendo cada vez mais que nós, no feminino, amamos muito, sim. Amamos o homem ou os homens que foram ou são eixo da nossa vida, quantas vezes incondicionalmente. Mas amamos ainda mais o Amor… Ou seja, a ideia do amor. Que nos inculcam como a finalidade maior da vida de uma mulher, desde as primeiras brincadeiras de meninas. Que a educação formal e informal, mais os media e o seu quase absoluto poder, não param de reforçar, em cada dia. O amor - esse diáfano elemento sem o qual no fundo nos sentimos incompletas, castradas, deficientes…
Porque o amor - falo aqui do amor entre homem e mulher - é, sim, uma das forças vitais maiores. Felizmente. Mas não é um destino nem uma justificação para viver. É um aprofundamento extraordinário do viver. Entre outros. Não nos substitui nem nos define enquanto pessoas. Não reside no ser feminino como se, sem ele, a nossa estrutura humana se desmanchasse, gelatinosa… Já dos homens não se espera que as suas vidas sejam justificadas pelo amor…Que homem se sentirá insignificante, perdido no mundo, irrealizado , sem préstimo, só porque não tem um amor bem sucedido? Pode sofrer, e sofrerá. Mas não é aí nem por aí que a sua autoimagem como pessoa e a perceção por parte dos outros se constrói ou se destrói. Olhemos para a agressividade da palavra antiga ”solteirona” (leia-se coitada, desinteressante, amarga, que ninguém quis...) confrontada com a de “solteirão” (galanteador, anti compromisso, leviano mas charmoso, apetecível…). Embora, reconheçamos, os homens amem tanto como nós - não é isso que está em causa, mas o valor simbólico e representacional do amor na difícil equação dos géneros neste iniciante século XXI.
E isto acorda outras campainhas da memória – quantas mulheres da minha geração foram olhadas com suspeição há 40 ou 30 anos quando assumiram uma separação ou apenas ousaram viver sós, não casar, não viver com ninguém? O olhar que evoco e nos era devolvido situava-se algures entre o juízo moral duvidoso (pouco sérias..?, uma ameaça às bem casadas..?) ou a suspeita de algum défice de normalidade psicológica (como podem querer ser pessoas sós?... que frieza…falta de sentimentos?...serão normais? frígidas?.. ).
Nesta fase, quem me lê estará talvez a pensar: ora bem, traumas antigos, hoje já nada disso acontece…E é aí mesmo que eu quero chegar,..Eu julgava, sim, que essa experiência era do passado, que hoje já não acontecia às minhas companheiras de género mais novas, herdeiras, para bem delas, de um património de liberdade conquistada a pulso....Mas acontece. Acontece que a violência no namoro (!!!) não para de crescer e uma grande parte das jovens mulheres nessa situação toma-a como relativamente natural, sinal do amor do homem que as agride (!!!) . Parece-me o fado da Severa….Acontece que muitas mulheres que conheço, educadas ou simples, sofisticadas ou modestas, jovens e menos jovens, suportam casamentos ou ligações que as aprisionam porque (a) ainda os amam…, ou (b) não saberiam viver sem eles…Acontece que muitas das que decidem viver sós reencontram, estupefactas, ainda hoje, a velada crítica, ou a compaixão simpática – e ofensiva - pela sua suposta “limitação”….
Pois fico triste. Mudar é muito mais difícil e complexo do que parece… Atravessou-se nesta meditação melancólica a extraordinária rábula do episódio de Ricardo Araújo Pereia na TVI “É melhor do que falecer”, passado no dia 25 de abril, e protagonizado de forma extraordinária, a meu ver, por Maria do Céu Guerra. Sentada na sua cozinha modesta, a descascar umas infindáveis cenouras, a mulher que ali fala conta-nos como a democracia “lhe faz dores de cabeça….Para que lhe serve a liberdade se não tem nada para fazer com ela?...”. Pareceu-me que falávamos da mesma coisa.
Maria do Céu Roldão