A primeira é catártica, quase nunca resolve, mas alivia. As outras duas escondem e remoem o sofrimento colocando a sua vida em suspensão até que as coisas melhorem. Na primeira a angústia muitas vezes manifesta-se por deslocamento transferindo para outras situações, pessoas ou objetos, comportamentos inadequados e quase sempre desequilibrados pela desproporção reativa. E daí as expressões que frequentemente usamos como: “ a gota de água que transbordou o copo” ou o “rastilho que incendiou a pólvora”.
Mas quando a resposta à angústia é fingir que nada se passa e o silêncio a forma de (se) enganar, os efeitos psicológicos podem ser ainda mais perigosos, pois são geradores de autocomiseração. E sem interlocutor, sem um ouvido externo esta é potencialmente depressiva. A dor sem partilha é uma dor que se autoalimenta na constatação dessa solidão, o que por vezes ainda magoa mais do que a impossibilidade de resolução do que afeta a pessoa. Às vezes este fingimento transforma-se quase numa “dupla personalidade”: em casa, junto daqueles que conhecem as razões da sua angústia, tira-se a máscara e mostra-se a revolta com todas as suas caras. Mas entre estranhos há um recato defensivo para não desnudar o que nos faz diferentes pois se compreensão é uma necessidade, a “pena” ofende.
Este ano fui testemunha de três situações que, a partir da mais recente, me suscitaram uma reflexão sobre se em tempos difíceis a escola está preparada para ouvir até os que não querem falar. Se enquanto estrutura com funções definidas para cada ator sabe encontrar um tempo, um espaço e interlocutores vocacionados para ouvir. Se percebe quando a prioridade é interpretar os silêncios daqueles que calam a angústia. Uma escola que saiba quanto se ganha quando se “perde algum tempo” a observar mais atentamente as pessoas que a constituem. Porque a escola são as pessoas. Quando podemos fazê-lo, compreendemos que afinal muitos sinais silenciosos são ensurdecedores e que só pela turbulência da nossa vida não o tínhamos conseguido perceber.
Eis os meus pretextos reflexivos:
1-Esta semana conversei com um aluno de uma das minhas turmas acerca do seu comportamento inadequado com uma professora, a propósito do qual ele estava a ser alvo de um procedimento sancionatório. Disse-lhe que estava muito desiludida pois, até aí, considerava-o um aluno equilibrado, educado e interessado mas pelo que me tinham contado colocava, agora, em causa o meu juízo. Perguntei afinal quem era ele. O aluno que desde o início do ano conhecia com uma postura escolar correta ou aquele aluno boçal capaz de protagonizar uma situação tão pouco edificante como aquela de que tinha tido conhecimento. O aluno olhou para mim e com voz tremula só foi capaz de dizer num suspiro. “ Oh professora, a minha vida é tão complicada …”. Ouvi o que me quis contar, disse o que podia dizer. E só pensei: “como se consegue esconder dos outros tanto desencanto, tanta tristeza? “
2-Logo depois da interrupção da Páscoa, na sala de atendimento dos encarregados de educação e a propósito de uma situação disciplinar semelhante, uma angustiada mãe depois de ouvir atentamente os contornos do mau comportamento do seu filho, referiu de forma envergonhada o que poderia ser considerado uma atenuante para tal comportamento: “ Ele não diz nada, mas sinto que ele anda muito revoltado. Comigo, com o pai, com toda a gente. Sabe, ainda na Sexta-Feira Santa ficamos sem gás e só consegui dinheiro para comprar outra botija no fim da tarde de segunda-feira. Passamos todo o fim-de-semana a comer pão com fiambre, enquanto os amigos dele comiam cabrito e amêndoas.” Eu não conheço o aluno mas senti que ele também precisava de muito mais do que a ajuda institucional que foi desde logo procurada pela sua diretora de turma. Ele precisava de ser ouvido, nem que fosse no seu silêncio de revolta. Talvez para perceber, nesse silêncio, que os seus pais também não têm culpa.
3-O último caso impressionou-me muito. Foi há algumas semanas. Voltava para a escola do almoço quando vi uma das minhas alunas muito agitada, tentando forçar o funcionário da portaria a facultar-lhe o número de telefone da sua Diretora de Turma. É uma aluna calma, muito calada e não percebi porque estava tão transtornada.
Chamei-a e perguntei-lhe qual era o problema, dizendo que a sua diretora de turma não viria da parte da tarde mas, caso se justificasse, eu podia telefonar-lhe. Disse-me que não estava preparada para o teste de avaliação da disciplina, de que a diretora de turma era titular, no dia seguinte. Eu sorri e disse-lhe que não me parecia uma boa razão para telefonar. Melhor seria estar a usar o tempo a preparar-se.
Olhou para mim e disse-me baixinho: “é que a minha irmã morreu e ontem foi o enterro. Não pude estudar”. Assim. Fiquei sem palavras.
Perrenoud identifica o bom professor como aquele que sabe o que responder mesmo quando apanhado pela situação, quando é capaz de “tomar decisões no momento, sem grande ou nenhuma reflexão”. Não fui. A única coisa que me ouvi dizer foi: “E o que estás aqui a fazer? Porque não ficaste em casa?” Ela olhou para mim e toda a adrenalina reprimida se soltou: “então não sabe que nos cursos profissionais não se pode faltar? ”- disse em tom anormalmente alto.
O absurdo da resposta mostrava que tudo o que aquela aluna precisava era de derrubar as barreiras psicológicas que reprimiam o choro que não repara mas alivia o peso de um coração que já não consegue segurar a dor.
Fomos para um lugar recatado e ela falou da doença da sua irmã, de como isso tinha abalado a vida familiar, do vazio que sentia e que não sabia explicar. Cada palavra era um passo em frente para enfrentar a dor de uma realidade que ela tentava menorizar repetindo várias vezes: “que era uma coisa que já esperavam há muito. Que sabiam que um dia ia acontecer….”. Ao verbalizar os seus sentimentos ela ia percebendo que era mentira. Que, no fundo ela esperava que nunca acontecesse….
Chorou. Falou e eu quase só ouvi. No fim pediu-me para usar o lavatório da casa de banho das professoras para lavar a cara. Queria ir para a aula e pediu-me que não contasse a ninguém. “Porquê? Todos vão perceber que estás triste”, perguntei. Ela olhou para mim e disse: “Nunca ninguém reparou.”
E eu percebi que ela tinha razão. Será porque ela disfarça muito bem ou porque todos andamos distraídos?
Ana Paula Silva