A ninguém se oculta que a tarefa que os professores e professoras realizam é extremamente complexa. Porque a natureza da mesma é em si própria problemática, porque os "materiais" com que o professor trabalha (conceitos, ideias, sentimentos, atitudes, valores ... ) são extremamente sensíveis, pela diversidade inesgotável dos alunos (alguns resistentes à aprendizagem), pelas condições em que hoje se realiza essa tarefa (escolas com meios escassos, com pouca autonomia, com grupos de alunos demasiado grandes ... ). Além disso, enquanto a escola se empenha em propor um modelo de cidadão ou cidadã, outros agentes sociais seduzem com uma oferta de arquétipos que são diametralmente opostos.
Com a brevidade que este espaço impõe, quero comentar alguns mitos e erros que sustentaram e sustentam a prática profissional do ensino. É certo que cada um destes enunciados encerra uma dose de verdade, mas a sua elevação à categoria de dogmas empobreceu e falsificou as práticas docentes e desvalorizou um exercício profissional de extraordinária importância e complexidade.
1. O professor nasce, não se faz: o mito da vocação provocou muitos danos à profissão docente. Parecia dizer-se: "Como já nasceu para essa tarefa, não é preciso formá-lo. Como gosta de fazer o que faz, tem bastante sorte, nem é preciso pagar¬-lhe". Consequentemente, não necessitamos de formar o que não tem vocação. Que importância tem fazê-lo se carece de vocação? Não digo que não seja necessária uma disposição favorável, um compromisso com a prática, um desejo de fazer a tarefa com ilusão, mas outra coisa é esse conceito meio mágico, meio religioso, meio místico de vocação Cuja etimologia procede do verbo vocare, ou seja, "chamar": tem vocação o que é chamado para ... Não se sabe muito bem quem faz a chamada nem como se pode escutar). Penso que o professor se faz e faz-se com uma formação autêntica, tanto teórica como prática.
2. Para ser professor basta ter boa vontade: como se supõe que a profissão docente é inespecífica, ou seja, que não se necessitam conhecimentos específicos para a realizar, sustenta-se que para ser professor basta ser boa pessoa. Claro que é necessário, mas não é suficiente. Ninguém se colocaria nas mãos de um cirurgião que "tivesse boa vontade", mas que não soubesse operar, ninguém permitiria que a sua casa fosse feita por uma pessoa sem formação que diz "ter bons desejos de construir uma bonita casa" e que, inclusivamente, a faz gratuitamente.
3. Para ser professor basta dominar uma área de conhecimento: erro muito disseminado no qual se justifica a carência de formação específica do docente. Uma coisa é saber uma disciplina, outra é saber ensiná-la e outra, ainda mais complexa, é saber despertar o interesse em aprendê-la. Uma coisa é saber física ou inglês e outra, muito diferente, é saber didáctica dessas matérias, psicologia da aprendizagem, dinâmica de grupos e sociologia das organizações.
4. O ensino causa a aprendizagem: observe-se que se costuma falar de qualidade do ensino e poucas vezes da qualidade da aprendizagem. Não é certo que o ensino provoque, de forma automática, a aprendizagem. Se não se entroncam os novos saberes com os já adquiridos previamente, se não existe o mínimo interesse por aprender, se se pratica o ensino num idioma diferente do que o que o aprendiz domina, se quem tem que aprender não é capaz de prestar a mais ínfima
atenção, se o que têm que aprender não responde aos interesses e necessidades dos que aprendem ... não se produz uma aprendizagem significativa e relevante.
5. Existem meios inequívocos de comprovar se a aprendizagem se efectuou: não é certo que haja modos absolutamente precisos de conhecer se a aprendizagem existiu (e ainda menos de que esta tenha sido fruto do ensino e não de outras causas alheias ou colaterais). Não obstante, costuma fazer-se a avaliação como se se tratasse de uma medição de longitudes ou de pesos. Para que haja uma certa objectividade na correcção de exercícios de ciências é preciso um mínimo de doze conectores. Em exercícios de letras, um mínimo de cem.
6. Existem formas inequívocas de saber porque não se produziu a aprendizagem: a avaliação não só comprova como explica. Diz-se, implicitamente, que quando a aprendizagem não se produziu é por responsabilidade exclusiva dos alunos (são inconstantes, são indolentes, não têm nível, estão desmotivados, portam-se mal, têm más influências ... ). Quase sempre se deixam à margem outros tipos de explicações, como por exemplo: os conteúdos são pouco atractivos, os métodos são desmotivadores, a avaliação e a correcção são arbitrárias, a coordenação é insuficiente, os espaços são inóspitos, as motivações são pobres, as relações estão viciadas ...
7. Só se aprende com o professor (e com os livros que recomenda): não parece que se possa aprender muito com os companheiros (e, se se aprende algo com eles, não é conhecimento igualmente valioso ao que procede do professor, entre outras coisas, porque não irá ser objecto de avaliação). Não parece que se possa aprender, também, muito com a vida, a realidade, as observações directas que se fazem sobre ela.
8. Só se aprendem conhecimentos: além destes, aprendem-se também destrezas, atitudes e valores. Penso que se enganam aqueles que dizem que apenas são ensinantes, referindo-se a
que a sua tarefa é apenas a transmissão dos conhecimentos das suas matérias. Claro que são ensinantes, mas de muitas coisas mais. Qualquer professor ensina muitas coisas enquanto ensina. Ensina sensibilidade ou falta dela, sexismo ou igualdade, respeito ou falta de respeito, formas de comportamento solidárias ou egoístas ...
9. Só os alunos aprendem: quando se fala de aprendizagem, parece que apenas nos estamos a referir ao aluno. Quando se fala de ensino, ao professor. O aluno também pode ser um bom (ou mau) ensinante. O professor pode ser um excelente (ou um péssimo) aprendiz.
10. Só se aprende o que se pretende ensinar: o curriculum oculto das instituições está cheio de ensinamentos. Não se aprende apenas aquilo que é objecto explícito e directo do ensino. Enquanto os alunos aprendem o conteúdo das matérias, aprendem, simultaneamente, muitas outras coisas. E aprendem-nas de uma forma sub-reptícia, constante e omnímoda. Aprendem, por exemplo, que só interessa estudar quando lhes vão fazer perguntas. E apenas aqueles conteúdos que vão ser objecto de exame. Aprendem que não convém contrariar o professor ou que não se devem fazer perguntas intempestivas. Aprendem que um sabe (o professor) e os demais são ignorantes ...
Estes mitos e erros causaram e continuam a causar graves males no exercício da profissão e no modo de conceber a formação e de configurar a imagem social dos docentes. Se se elogia tanto a educação, torna-se necessário atentar de uma forma mais exigente na selecção, formaçào e organização dos profissionais que com tanto esforço a exercem.
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No Coração da Escola. Porto:ASA