"É a crença, e não a descrença, que é perigosa para nossa sociedade." (George Bernard Shaw)
Estava uma manhã quieta e branca. Alguns gritos de gaivota ecoavam em terra, em busca de comida.
Sentei-me de frente para mim mesmo e olhei-me fixamente, nos olhos, com a mesma convicção de outrora.
Perscrutei, com atenção, as marcas que no rosto denunciavam os lugares de destino das horas que por mim têm passado, das histórias que tenho vivido e, sobretudo, dos erros que tenho cometido. Percursos indeléveis pautados por indícios que recolhi, com a minúcia de um detective. Pistas consubstanciadas numa ou outra ruga cavada mais fundo, nas cãs que já não só despontavam, como afirmavam esplendor.
Sob a sinfonia de desespero das gaivotas, olhei-me com pudor. Descobri o corpo e expus-me à análise de mim mesmo e dos enganos que erguera. Anotei um pequeno conjunto de considerações, à luz dos meus equívocos e do contexto em que me encontro:
Afinal, houve momentos em que tive medo. Sobretudo de defraudar expectativas, de ser apanhado na contradição que descobre o estado da mentira, de ter dito uma coisa e realizado o seu contrário; Tive medo, sim.
Afinal, a felicidade não é um estado permanente e a humanidade não evolui, necessariamente, da barbárie para a civilização. Há retrocesso, sim.
Afinal, a Europa não é uma velha senhora, nem erudita, nem culta, nem definitivamente, tecnológica e evoluída, nem inovadora, nem protectora, nem solidária; Mas velha, sim.
Afinal, Portugal milenar não é abençoado pelo mar, nem pelo sol, nem pelas suas gentes e pode gerar, dentro de si mesmo, o Adamastor que o homem do leme, outrora, vencera. Pode, sim.
Afinal, o despautério pode não ter castigo, a corrupção pode não ter sanção, a lei pode ser violada, o humilde pode não ter remissão, o justo pode não ter a glória. Afinal, sim.
Fechei os olhos, limpei a lágrima e descobri-me sentado à minha frente, de costas voltadas para mim mesmo. Envergonhado de mim e das minhas crenças. Os gritos das gaivotas permaneciam iguais, mas a manhã estava já muito inquieta.
Antero Afonso