Ao assumir-se como ser social o ser humano tem nas palavras a sua forma privilegiada de relação. Da maneira como as veste ou reveste quando muda de interlocutor depende, em muito, a qualidade da sua integração gregária. Saber construir e adaptar o discurso ao outro; saber gerir o silêncio e a oportunidade; reconhecer nas palavras a verdade, o verosímil e o demagógico. Este é um conhecimento que se assume como condição de sobrevivência social.
Este tipo de ensinamento por vezes escapa às famílias, não é demonstrado nas gramáticas e os programas não o desvendam no texto, mas deve sempre ser encontrado na escola.
2- A professora dobrou a esquina que levava à escola, olhou em frente e percebeu que era um dos intervalos da manhã. À frente do portão o ritual dos intervalos. Professores e alunos, individualmente ou em grupo, fumavam entre toques de campainha, sofregamente, os seus cigarros.
Como chovia o espetáculo era ainda mais caricato. Uns e outros agrupavam-se, em círculo, debaixo de guarda-chuvas. Ela costuma brincar com a situação e chamar-lhes “círculos viciosos”.
Num desses abrigos de fumadores reconheceu um dos seus alunos com quem teria aulas no tempo letivo seguinte.
Mal chegou à sala de professores tocou a campainha que chamava para a entrada. Seguiu para a sala aula. A turma entrou e depois dos cumprimentos, antes de escrever o sumário, fez a chamada e constatou que o aluno que tinha visto à entrada não estava presente. Poucos minutos depois de iniciada a aula, bateram à porta e o referido aluno entrou: “bom dia “ – disse e sentou-se.
A professora olhou para ele à espera de mais alguma coisa. Ele percebeu e acrescentou: “desculpe o atraso”.
“Deves ser mais responsável com a pontualidade. Quando entrei vi que estavas lá fora a fumar com os teus colegas. Por isso, quando for o caso, deves estar atento mais à campainha”- referiu calmamente a professora, pensando que apesar de tudo o atraso não era significativo.
O aluno não gostou da pequena repreensão e disse de uma forma rude: “Estava lá fora porque posso, tenho autorização. Os professores também lá estavam. Não sou o único aluno a chegar atrasado. Às vezes outros alunos também se atrasam. E também “não é assim tanto atraso”……Que exagero! “ Concluiu com ar de quem está com toda a razão.
A professora sentiu que a turma esperava a sua reação. Ela percebeu que a situação exigia que escolhesse uma de duas respostas: uma enérgica e instrumental que usa a punição apenas como reforço negativo ou uma resposta menos “musculada “mas mais pedagógica:
“ Já iremos falar sobre isso. Agora escuta uma história de que me lembrei agora a propósito: eu tinha mais ao menos a tua idade e fui, a mando da minha mãe, comprar especiarias à Rua do Bonjardim. Sabes onde fica?”- Ele respondeu que sim que até tinha um amigo que morava nessa rua. “Bom”, continuou a professora, “na altura a pimenta, a canela, o pimentão e até o chá compravam-se a peso”. E continuou: “pedi o que queria e o dono da loja pesou, embrulhou e entregou-me o pedido. Enquanto pegava no embrulho, entreguei-lhe uma nota de 50 escudos (ainda não havia euros). O merceeiro entregou-me o troco que fechei cuidadosamente na mão pois, com algum esforço, tentava enfiar o pacote na minha mala já que, na época, não era hábito dar ao cliente um saco plástico. Entretanto dirigi-me para a porta e saí. Fui subindo a rua e depois de acomodado o embrulho achei conveniente guardar o troco no porta-moedas. Ao fazê-lo percebi que o merceeiro se tinha enganado. Com o troco tinha-me devolvido a mesma nota que eu lhe tinha entregado. Na minha mão estavam os cinquenta escudos mais uma nota de vinte e várias moedas. Voltei para trás. Reentrei na loja. Dirigi-me ao dono, que era quem me tinha atendido e que entretanto estava ocupado com outros clientes e disse: “ O senhor desculpe, mas enganou-se. O troco está errado “.
Com olhar irritado e voz de poucos amigos respondeu: “ problema seu. O troco confere-se na loja não é na rua! Agora já era!” Acrescentou triunfante, deduzindo-se vencedor.
A professora fez uma pausa, dirigiu-se de novo ao Pedro e perguntou: “ O que farias se fosse contigo Pedro? Devolvias o dinheiro como parece ser o legal e eticamente correto ou aproveitavas para ensinar ao senhor que se deve saber usar as palavras certas não fazendo juízos precipitados?”
Ele olhou para a professora e disse “ É o davas …. Ele que não se armasse em esperto. Não lhe dava e até lhe mostrava a nota para ele ver que tinha sido um trouxa pois tinha ficado a perder. Depois punha-me a andar a rir à gargalhada… “
A professora sorriu e disse: “ Parece que estamos de acordo que o merceeiro perdeu a razão no momento em que em vez de tentar perceber que tinha errado, passou logo ao ataque como forma de defesa. Concordamos que ele teria sido mais inteligente se tivesse escolhido as palavras certas.”
Olhou para a turma e a opinião era unânime. O merceeiro não merecia a devolução do dinheiro.
Voltando a dirigir-se ao aluno concluiu: “percebes agora, Pedro, porque mesmo que eu considerasse não registar a falta de atraso agora não posso deixar de o fazer? Tu não soubeste usar as palavras certas! “ Vencido e convencido o aluno assentiu com a cabeça.
A partir daí a aula decorreu normalmente. Quando terminou, o Pedro dirigiu-se à professora e sorrindo disse:
- “ainda vou a tempo dizer as palavras certas?”
- “claro, respondeu a docente, as palavras certas são sempre bem-vindas. “
- “então é assim: desculpe por chegar atrasado, estava na conversa e distraí-me com as horas. Prometo que não volta a acontecer.”
- “obrigado Pedro. Essas palavras já não apagam a falta mas fazem melhor: dão-te um crédito importante na minha consideração. O erro mostra-te humano mas o seu reconhecimento prova que és um bom candidato a um adulto de carácter. “
A professora fechou o computador e pegou na sua mala enquanto dizia: “ bom feriado. Até segunda.”
“Até segunda, professora. Pontualmente…. “
Ana Paula Silva