Não, não vou falar dos cortes orçamentais à cultura… embora valesse muito a pena, mas já se me gasta a pena - ou a tecla…- “que a lira tenho destemperada e a voz enrouquecida”, como diria Camões, de tanto escrever, ler, falar, ouvir, sobre a nossa tristeza política e penúria cidadã. Prefiro deslocar-me para uma reflexão que me vem perseguindo no que toca ao mundo de trabalho e investigação que é o meu – a educação.
Sem quase darmos por isso, as práticas culturais vêm-se esbatendo na chamada vida pública da nossa sociedade, cada vez mais encostadinhas a um canto, acolhidas nalguns pequenos nichos, tentando sobreviver à varridela empreendedorística que nos assola…E na Educação falamos em tantos Seminários, escrevemos investigação em tantos artigos e livros, participamos em tantos projetos educativos, e conseguimos surpreendentemente circular com escassos cruzamentos com a cultura formal - ela mesma forma privilegiada de e para educar.
As atividades culturais são no mínimo muito discretas no interior da escola e mesmo, ouso dizê-lo, mortiças nas universidades – exceto nas faculdades e cursos específicos. Raramente , ainda que algumas vezes, se vivem na escola acontecimentos de pura cultura – teatro, dança, cinema, literatura, entre outros – sem que tenham necessariamente implicação didática imediata, pela promoção do puro prazer da fruição e pela intrínseca valia da imersão nesses mundos que alimentam a nossa riqueza interior e são, por isso mesmo, cultura. Não é só de agora, convenhamos… Na formação de professores, em Universidades e Politécnicos, é bem visível o divórcio de muitos candidatos a professores face a experiências culturais, porventura porque não tiveram acesso social a elas no seu percurso anterior. E a escola/universidade oferece ela própria o quê para se tornar um locus cultural onde se bebe tudo isso? Pouco mais que nada…
Tive o (mau?) hábito de lançar regularmente aos alunos de formação inicial, e também a turmas de professores em exercício, uma ou duas questões no início das disciplinas, acerca do último livro que tinham lido, ou filme ou exposição que teriam visto. Uma larga maioria não fazia uma coisa nem outra. E nós, os formadores, que oferecíamos? Nada…ou um discurso ocasional sobre tal autor, filme ou pintor….E por vezes uma velada – e injusta - ironia quando, ao falar de um escritor ou de um filme, obtínhamos uma total (e natural) ausência de retorno.
Quando afinal é do nosso lado que está a maior fatia do problema. É a uma escola que forma professores , penso, que cabe alimentar o caldo cultural que lhes proporcione o crescimento intelectual, o alargamento de mundos, o acesso e a fruição da cultura, neste sentido particular do termo. E todavia… ensinar é uma profissão de cultura. E o professor, parafraseando Ivor Goodson acerca do investigador educacional, é, ou deve ser, um “intelectual público”.
Dizer que no “nosso tempo” – seja lá isso o que for… - éramos cultos e interessantes, é uma blague sem sentido. Do que se trata é de alimentar essa força profunda que se traduz na proximidade aos bens culturais tornada real em cada contexto.
Por isso tiro tanto inesperado prazer do facebook… Porque, tal como todos os outros contextos pré internet, oferece o acesso ao melhor e ao pior, só que a uma escala quase ilimitadamente ampliada. A questão está em que se saiba escolher. E quem sabe /pode escolher com mais critério e utilidade?... E para isso a escola/universidade tem ou não algo a fazer?....
No facebook , mais do que me acontecia antes de aqui aportar, em modo de navegação à vista, encontro todos os dias alimento cultural – o texto que alguém destaca, a pintura que me delicia, o autor que se relembra, o poema que se escreveu…
Viva pois a cultura! Não se provou infelizmente que as populações mais cultas sejam imunes à violência ou à barbárie – quem tem medo da Laranja Mecânica? E de todas as suas versões pré e pós–modernas? Mas é certo que aquele que ama a música, a arte, a literatura , o pensamento, tem mais instrumentos de vida, pode ser mais humano do que se os não tivesse. Muito se cita a resposta veemente de Winston Churchill quando lhe foram sugeridos cortes ao financiamento da cultura, em plena II Guerra Mundial: “Isso nunca! Afinal, não é para defender a cultura que estamos a fazer esta guerra?...”
Por isso estranho que, cada vez mais, nas inúmeras discussões, sessões, seminários sobre educação em que participo, se fale tão pouco de cultura – eu incluída…E se “naturalize” essa ausência…Como dizia com precisão e inteligência António Pinto Ribeiro, num Câmara Clara que passou na RTP 2 há algum tempo, dedicado ao estado da cultura, que cito de cor, “podemos ter uma sociedade sem teatro, sem música , sem literatura – mas quereremos viver nela?...”
Maria do Céu Roldão