Em princípio, adequadas políticas educativas resolveriam o problema ou tornariam menor a sua dimensão. Se isso ainda não acontece deve-se a inadequação das sucessivas políticas, cabendo a responsabilidade maximamente a quem as delineou e decidiu pôr no terreno.
Essas inúmeras políticas têm-se espelhado em leis, decretos, despachos, regulamentos, normas. Toda essa normatividade condiciona as práticas dos professores, que se traduzem em procedimentos repetitivos cujo fundamento não é interrogado nem questionado (Azevedo, 2002 e 2011).
Como resultado disso, podemos ver que o trabalho dos professores é, em boa parte, constituído por um conjunto de rotinas muito reguladas e controladas. Alguns exemplos ilustram essa realidade: as aulas previstas e dadas em horários inamovíveis; os conselhos de turma que, no mínimo, se repetem trimestralmente, com calendário rígido e atividade intensa; os conselhos de departamento, sempre com uma agenda carregada, nomeadamente com a difusão de informações vindas do Conselho Pedagógico.
Dir-se-á que as rotinas têm sido combatidas por múltiplas e sucessivas inovações. Sim, é verdade. Mas, quantas subsistem? Muitas são substituídas mesmo antes de ser completado o respectivo ciclo ou ser avaliada a sua eficácia. É por isso que Hargreaves e Fink (2007), preocupados com a sustentabilidade da melhoria educativa, recorrem ao conceito de “síndrome da mudança repetitiva” (citando E. Abrahamson (2004), um especialista em gestão da mudança) que aponta para duas dimensões:
a) Sobrecarga de iniciativas: “a tendência das organizações para lançarem mais iniciativas de mudança do que qualquer pessoa conseguiria razoavelmente assimilar”;
b) Caos relacionado com a mudança: “o estado contínuo de instabilidade que resulta de já existirem tantas iniciativas de na organização que qualquer pessoa tem dificuldade em saber que mudança está a implementar e porquê” – o que conduz, por sua vez, à perda da memória organizacional.» (Hargreaves e Fink, 2007: 20)
Em resultado dessas práticas hiperreguladas, professores, daqui, dali e dalém, queixam-se de sobrecarga de trabalho. M. Fullan (escrevendo bem longe de Portugal) acolhe esse lamento:
“Os professores e os diretores das escolas estão a ser sujeitos a uma perigosa sobrecarga: mais responsabilidades ao nível da “assistência social”, uma maior prestação de contas e a necessidade de lidar com um leque mais alargado de aptidões e de comportamentos na sala de aula, agora, tudo isto faz parte do papel do professor” (Fullan, 1996: 20)
Enquanto essa sobrecarga parece aumentar e certas rotinas permanecem intactas, ano após ano, a investigação educacional interessada na eficácia e na melhoria da escola, depois de experimentar muitos processos de mudança da escola no sentido da melhoria, encaminhou-se nas duas últimas décadas para a identificação do “núcleo básico da melhoria” (Bolívar, 2012: 194), considerando que este é, afinal, constituído pelas práticas dos professores na sala de aula e pelas aprendizagens dos alunos:
“O foco prioritário da melhoria é, então, o ensino e a aprendizagem dos alunos. Ao seu serviço e apoio está, entre outros, o trabalho conjunto ao nível da escola” (Bolívar, 2012: 199).“
Em vez de partir da mudança das estruturas organizacionais para a prática docente na sala de aula, Bolívar - na senda de R. Elmore (1996) - recomenda o caminho inverso. O núcleo central da mudança, o ponto de partida da “reviravolta”, deverá ser a reflexão individual e o diálogo persistente sobre as práticas, sobre as estratégias de ensino e aprendizagem e não a reestruturação organizacional.
Vários autores recomendam a construção de dinâmicas que promovam a colegialidade autêntica (Hargreaves, 1998: 277), sublinhando o “poder da colaboração” (Fullan, 1996, 82 e segs.) e a necessidade de “transformar as escolas em comunidades de aprendizagem profissional” (Bolívar, 2012: 127).
Porém, alguma investigação revela-se céptica relativamente à possibilidade de, num prazo curto, desenvolver essas comunidades devido a um traço fundamental da cultura profissional dos professores. Timperley e Robinson (2000) defenderam mesmo uma tese polémica:
“Os professores não sómente sofrem com os problemas de sobrecarga de trabalho como também os criam” (Timperley e Robinson, 2000: 47)
As autoras referem que “a autonomia concedida aos indivíduos e aos departamentos” conduz a que “o apoio que os professores oferecem aos seus colegas” seja “relativamente acrítico”.
Ou seja, o respeito pela autonomia de todos e cada um dos professores impede (ou, pelo menos, limita bastante ou torna difícil) que um professor receba dos colegas contribuições válidas sobre o seu trabalho docente.
As escolas neozelandesas, em que as autoras fizeram a investigação e que lhes permitiu construir esta tese, têm um nível de autonomia organizacional muito superior ao das nossas escolas públicas. Mas, alguns traços da cultura profissional docente que as autoras assinalam são transversais e ocorrem, quer nos antípodas, quer entre nós.
Dir-se-á: em que é que isto se relaciona com o que se passa nos Conselhos de Turma (CT) de muitas escolas portuguesas?
A análise empírica do conteúdo de atas de conselhos de turma e entrevistas coletivas com professores em formação com experiência docente nos EB23 e Secundário que pudemos fazer, mostrou-nos que os CT se referem predominantemente (por vezes, quase exclusivamente) às dificuldades dos alunos. Até se usam grelhas ou matrizes com listas de 20 ou 30 dificuldades. As células da matriz são assinaladas em função das dificuldades principais de cada aluno. A perspetiva que implicita ou explicitamente fundamenta estas práticas é a de que todas as dificuldades de aprendizagem têm origem ou no próprio aluno ou em factores externos à escola (família, meio socioeconómico e cultural). É, implicitamente, um discurso legitimador da classe docente que se sente acossada e receia a judicialização de decisões e ações pedagógicas.
É aqui que propomos uma pequena “reviravolta”. O que defendemos é que, se a melhoria tem de partir do núcleo pedagógico, então é preciso dar aos CT outra perspetiva, outro conteúdo.
Por um lado, uma mudança de perspetiva: limitar a negatividade ao mínimo (as grelhas das dificuldades poderão apenas ficar nos anexos da ata), trazer a positividade para o centro das atenções.
Por outro lado, o conteúdo: que progressos na aprendizagem? Que casos exemplares de mudança positiva significativa (cf. R. Davies) ocorreram nos alunos? Devido a que estratégias de ensino? Quais delas são de destacar? Que pode ser feito entre professores de distintas áreas no sentido de criar sinergias para melhorar as aprendizagens? Fazer dos CT um espaço de articulação horizontal será possível?
Em resumo: será necessário pensar uma estratégia que, mantendo certas rotinas dos CT de fim de período (calendário apertado, ...), as torne um espaço e um tempo onde seja possível dialogar sobre o núcleo pedagógico-didático. Desse modo, de uma fonte de sobrecarga profissional, os CT poderão tornar-se uma fonte de desenvolvimento profissional e organizacional.
Vitor Alaiz