Acordei, porque precisava de voltar a adormecer. Revi, enquanto a madrugada me limpava os olhos da noite atribulada, os meus amigos, aqueles que perduram apesar do tempo. Voltei a adormecer, para sonhar com a amizade, agora no Monhé, a desfrutar do cozido no pão, transformado em Casa da Música, com a excentricidade do concerto para violino de Tchaikovsky, suportado pelo virtuosismo de Ray Chen. Uma sala cheia, pendurada no silêncio! E o amigo Luís a proceder à celebração, num ritual que mistura batuta e explicações, música e comida, e os amigos à volta, mortos de fome.
Celebrava estes anos que levo de vida, que podem ter sido os piores se os amigos souberem continuar a cuidar de mim. Deixei deslizar os meus segredos e esqueci as palavras do mestre da culinária, substitui os acordes pelos meus próprios pensamentos. De dentro de mim, perfilavam-se os rostos e as marcas de quem me marcou, os olhos e as mãos de que se fazem os abraços.
Elaboro um texto, onde registo os fios, indeléveis, que ligam as palavras aos sentidos, sempre que nos encontramos, os sinais que me conduzem aos lugares do encontro, sempre que o encontro é necessário, a certeza de que não exigirão explicações, para além das que lhes forneça, verdadeiras ou não, a pujança do mosto e o tempo da fermentação, nos momentos de ausência, o vinho onde refrescam a memória, sempre a meu favor, sempre para melhor, a partilha do que é bom e do que é ruim, com naturalidade e compromisso, a profundidade a que elevam o pensamento em busca de solução, sempre que o problema é complexo, o riso e o choro de que são capazes, na mais subterrânea das cumplicidades, as infinitas linhas com que conduzem as águas para o mar, deixando-me limpo o caminho. E descubro, numa palavra, a amizade, que deles me torna refém.
Sonho, ainda, com um sorteio de automóveis, onde ganho uma fatura. Pago a conta e acordo depressa porque o dia seguinte é vinte e cinco do mês de Abril e eu tenho muito para festejar.
Antero Afonso