O perfil do aluno dos cursos profissionais desenha um aluno que só se concentra estando ativo numa tarefa ou motivado para uma atividade ou temática que realmente lhe interessa. Estas condições são manifestamente difíceis de sustentar, de uma forma permanente, durante 90min. (ou mais, em mutos casos).É, por isso, que o efeito professor, que é visível em todos os ciclos de ensino, é gritante, na sua relevância, nos Cursos Profissionais.
Este ano leciono num curso de Mecatrónica com 30 alunos. Esta turma constitui um desafio para qualquer professor. Dizer que são indisciplinados, nos tempos que correm, parece-me exagerado mas é muito complicado conseguir a sua atenção no período útil de uma aula. Ontem soube que teria havido um problema na aula que tinha antecedido a minha e que um aluno teria sido expulso da sala. Senti que as ondas de choque de uma situação de instabilidade poderiam condicionar negativamente a minha aula. Quando entrei na sala discutia-se a justiça ou injustiça da decisão tomada pelo professor. Pedi que se focalizassem na aula e depois dos procedimentos preparatórios comecei a apresentar um PowerPoint. Percebi que olhavam e tentavam evitar, sem conseguir, continuar a discussão mas não me ouviam.
Precisavam de libertar a adrenalina em excesso e uma discussão orientada poderia servir pedagogicamente. Como a decisão tomada por um colega, naquele contexto, era uma discussão que não podia patrocinar, atirei sem qualquer ligação com o que apresentava: “sabem nestes trinta anos que sou professora aprendi que há dois tipos de alunos.” Consegui a atenção da turma. Todos esperaram que dissesse quais. Como, estrategicamente, não o fiz, de imediato um aluno disse:” já sei: os do regular e os dos profissionais”. “ Não - disse eu- os que têm e os que não têm um projeto para a sua vida”, “ os que vêem a escola como um investimento para a construção de um futuro melhor e os que vêem a escola como um sítio para ir estando à espera do que virá “. Aqui fez-se silêncio e um outro aluno, suspirando, retorquiu: “ Não é tão simples assim professora, alguns nós têm uma vida muito complicada”.
Tinha orientado a discussão para o meu objetivo e então falei-lhes de Freud e da sua afirmação que tinha o peso de uma sentença: “nós somos o que fizeram de nós “. Como se o nosso nascimento e contextos de socialização primária fossem uma cruz que teríamos de carregar obrigatoriamente sem descanso ou fuga. Falei-lhes do livre-arbítrio, do determinismo, falei-lhes da afirmação de liberdade que constituem o poder deliberativo e de decisão de cada pessoa. Falei-lhes do sabor da conquista de um estatuto e de uma vida melhor. Falei-lhes da capacidade de resiliência que separa os que fazem dos constrangimentos desafios e dos que consomem a sua vida com auto comiseração, desculpando os seus falhanços com a sua má estrela ou a maldade do destino. Falei-lhes do conforto cobarde de colocar sempre a culpa nas circunstâncias e na coragem de assumir a responsabilidade que sempre acompanha o direito à liberdade.
Então disse-lhes que uns anos mais um filósofo francês, J.P. Sartre teria proclamado a esperança na capacidade de decisão e liberdade do ser humano ao reformular a frase sentencial de Freud, afirmando : “nós somos o que fazemos do que fizeram de nós “. E não disse mais nada porque não foi preciso.
O debate foi intenso, todos participaram e todos concordaram que cada um tinha a liberdade de não querer aprender, mas ninguém tinha a liberdade de impedir o outros (os que tinham um projeto para a sua vida) de aprender. De que não há liberdades melhores ou maiores. Há direitos e deveres.
Então, um aluno levantou o braço e pediu-me:” professora posso ir para a frente que aqui distraio-me muito e não deixo os outros ouvir?” Como ninguém parecia disposto a trocar e ir para os lugares de trás negociamos reorganizar as carteiras para reduzir a profundidade da sua disposição na sala e o aluno em questão veio para os lugares da frente, na nova fila. De uma forma ordenada e rápida. Na nossa aula, agora, será assim. Todos se comprometeram a respeitar a liberdade de quem quer ter condições e tranquilidade para aprender.
Não eram alunos primorosos de um qualquer ano dos cursos regulares. Não foi uma aula de filosofia para alunos com ambições universitárias. Foram alunos dos cursos profissionais e, naquela aula, um dos mais atentos e participativos públicos discentes que tive nos anos em que sou professora. E senti (e essa não será a maior ambição de um professor?) que aquela aula dentro da aula foi efetivamente um valor acrescentado.
Quanto a mim aprendi uma coisa que suspeitava há muito. Não é só necessário, é urgente um espaço de debate sobre temas de cidadania e urbanidade na escola, em Portugal. Ele existe pouco em muitas das famílias, é raro nas discussões entre pares e embora a sua importância seja consensual a sua existência na escola é uma falácia na transversalidade de um currículo que dizem que o supõe mas que o nega implicitamente alegando o cumprimento de programas.
E as escolas que assumem a sua relevância de imediato transformam e enformam o debate em “disciplina” de educação cívica e logo organizam um programa, uma avaliação …. e o debate transforma-se num molde.
Ana Paula Silva