Havia um bar em Boston, numa rua chegada ao campus de Harvard, chamado Mud and Stars – Lama e Estrelas. Os estudantes, em que ao tempo me incluía, gostavam de ir até lá depois das tardes de seminário ou nas recém descobertas sessões de teatro ou música das friday nights de uma cidade universitária americana cheia de vibração e cultura. Nas paredes do Mud and Stars, a paixão incomensurável de Bogart e Bergman contemplava-nos, melancólica, na imortal evocação de Casablanca, e havia Lodo no Cais no rosto fechado de um Brando jovem, belo como um deus, amargo, doce e duro – e ferido de uma fragilidade sem limites. Era todo o esplendor da descoberta de uma América multifacetada e contraditória, que a nossa vida anterior nos tinha desenhado toscamente a preto e branco. Mas o mais sedutor do inocente bar, tão inocente que fechava à uma hora da manhã…era mesmo o nome – Mud and Stars. A própria realidade americana, que nessa altura descobri um pouco, era a réplica exata da feliz metáfora. O melhor e o pior que a humanidade pode abranger, a miséria humana mais absoluta numa esquina, e noutra alguém que canta na rua com a voz divina de uma Callas, a possibilidade sem limites e o risco total, são traços desta sociedade assustadora e fascinante que não é possível compreender olhando-a na lógica da cultura europeia.
A lama e estrelas de que somos feitos continua a ser uma metáfora perfeita para mim no dia-a-dia, uma espécie de dialética caseira do quotidiano. Esta semana, atingi, julgo, o ponto de náusea da leitura de jornais e audição de noticiários… Não que tenha acontecido algo muito relevante ou grave, não. Mas a insustentável vacuidade no que toca à atmosfera política em geral, à crise e suas infinitas glosas, ao discurso em redondo, ao quem disse o quê…- afronta-me como um imergir num barro intransformável em que se prende o andar, onde caminhar verticalmente se torna penoso, uma lama que já não nos deixa ver as estrelas, nem sequer saber se há estrelas.
Mas na mesma semana, durante dois dias os alunos de doutoramento da Católica - FEP discutiram connosco os seus projetos, numa prova pública. Uns melhor, outros ainda não tão bem, mas todos, durante os dois dias, se mantiveram, para minha surpresa, coesos como um todo, a apoiarem os colegas, assistindo todos a todos, temperando a tensão de alguns com uma graça a tempo ou um pequeno gesto nos intervalos, desvelando, na animação um pouco construída, uma evidente solidariedade de que não me tinha ainda dado conta - há estrelas por ali.
O mundo entretanto afoga-se em conflitos, também eles renovados e reconfigurados cada dia num jogo lamacento que parece infindável. E um papa de nome Francisco, a tornar-se incomodamente popular, se calhar polémico, misto de jesuíta que é e de franciscano que parece ser, vai aos lugares mais improváveis, chora os mortos em Lampedusa e acorda a vergonha dessas mortes, entra nos bairros de lama onde há muito se esqueceu que há estrelas, armado com o seu sorriso e a sua humanidade inquebrantável, transportando para o século XXI o mandato do basco Loyola no século XVI : “ Vai em frente e incendeia o mundo”.
Fala do interior da sua Igreja, mas não fala só para a sua Igreja. Não pergunta se somos parte dela. Nem sequer como somos ou quem somos - e essa é talvez a sua obra maior. Fala para esse mundo que urge incendiar. Ouve-se bem do lado de fora, dos muitos outros lados do humano, do lado de quem faz e quem não faz parte do seu credo, dos infinitos pontos de referência onde se configura todo e cada um de nós, na lama e luz de que somos feitos. Mud and Stars.
Maria do Céu Roldão