No fim da primeira semana do segundo período saía de uma aula e reparei que uma aluna esperava que fechasse a porta. -“ Posso falar consigo professora?”.” Agora não” tive de responder. No tempo letivo seguinte a aula era em outra escola do Agrupamento”. Sinto-me uma professora ao domicílio, mas não me queixo. As duas escolas são separadas por uma rua. Muitos colegas de profissão efetuam o trânsito entre escolas em transportes públicos ou viaturas próprias e, por isso, com uma agravante financeira e de angústia de precisão horária que eu não tenho pela parca distância entre as duas escolas. -“Então, posso ir consigo até ao átrio?”. -“Claro, sempre podemos ir conversando”, respondi. Apesar do comportamento irreverente gosto desta aluna. Sempre alegre e interventiva seria uma ótima auxiliar para dinamizar a aula se a sua curiosidade mal medida, por vezes, não resultasse em instabilidade. Costumo pensar que é uma espécie de parabólica mal sintonizada. Sempre a rodar para a frente e para trás captando tudo e transmitindo tudo, mas não sabendo escolher a informação nem a qualidade da intervenção. Por esta razão já me zanguei com ela várias vezes. De pedido de desculpa fácil quando é repreendida, melhora ocasionalmente para repetir nas aulas seguintes….. “Então que me dizes?”- perguntei.- “ Professora, notou que mudei? Estou muito melhor! Eu acho que mudei.” Disse-me efusivamente. -“Bem, respondi, parece que estás melhor, mas uma semana são 5 aulas (2 blocos e meio) o que é pouco tempo para se falar em mudança. Mas se sentes que mudaste, eu acredito. Só tens que continuar a provar isso mesmo.” Parei, olhei-a nos olhos e perguntei: “ Mas a que se deve esse milagre? É paixão ou devoção? Brinquei” -“Sabe, professora, nestas férias nasceu a minha irmã. A minha mãe disse-me que agora devo ser mais responsável porque serei o modelo da minha irmã. Então lembrei-me do filme "A América Proibida "que a professora nos mostrou quando demos a ética e o que disse sobre a decisão que o Derek tomou para proteger o irmão e como isso foi a maior prova de amor que podia dar ao irmão. Como ele mudou para que o irmão tivesse um bom modelo e não repetisse os seus erros. Eu quero ser um bom modelo para a minha irmã.” E mostrou-me a fotografia da bebé no telemóvel. A primeira coisa que pensei foi que afinal “ a minha parabólica “ assimilava mais informação do que eu temia e, sobretudo, refletia mais sobre ela de que muitos dos “quietinhos”. Parei à porta da escola, preparando-me para abrir o guarda- chuva e disse-lhe: “ “Parabéns, numas férias, ganhaste um foco, cresceste. Se fores fiel a essa intenção vais efetivamente mudar. Não acredites em mudanças radicais que te forcem a ser quem não és. Dá um passo de cada vez, uma semana melhor que a anterior e serás o orgulho lá de casa…. Brinquei.” Parou a chuvinha irritante que eu temia que me acompanhasse até à outra escola, fechei o guarda-chuva e, a sorrir, saí apressadamente. Enquanto caminhava não pude deixar de pensar na importância de um foco mobilizador para todas as pessoas, mas para os jovens em particular. Professores, pais e encarregados de educação assumem inconscientemente que o foco de uma criança ou jovem se resume a crescer e ganhar um destino. Por vezes esquecemos que todos os caminhos se fazem melhor quando temos uma meta desejável e veículos que tornem a viagem agradável. Esta viagem é muito mais fácil se o jovem tiver guias orientadores cativantes e uma meta que ele próprio sonhou. Porque os sonhos não se impõem, constroem-se na nossa vontade. Ana Paula Silva As notícias de hoje não foram boas. O suicídio de um aluno de uma escola de Braga deixou-me angustiada. Porquê? Por três motivos: porque sou mãe; porque sou professora; porque sou católica. Enquanto mãe, amargura-me o dilacerar da dor daqueles pais. Os sentimentos de proteção, de abrigo e de segurança podem ser tão facilmente abalados. Julgamos saber quase tudo o que se passa com os nossos filhos e, ainda o sabendo, o abismo num instante se instala. Enquanto professora, não posso deixar de sentir uma profunda tristeza. Os meus alunos são da minha responsabilidade. Basta um deslize, uma desatenção e eles escapam-me. Esta apreensão é violenta e transtornadora. “Vítima de bullying”, crê-se. “Recebia já apoio psicológico”, afirmam. Como escapou então? Como foi possível num segundo parecer estar bem e no segundo seguinte já não estar? Quem falhou? Quais foram os seus últimos pensamentos? … Enquanto católica, não posso deixar de evocar as palavras do Santo Padre na sua Mensagem para a Celebração do XLVII Dia Mundial da Paz, do dia 1 de janeiro de 2014: “[…] no coração de cada homem e mulher, habita o anseio duma vida plena que contém uma aspiração irreprimível de fraternidade, impelindo à comunhão com os outros, em quem não encontramos inimigos ou concorrentes, mas irmãos que devemos acolher e abraçar.” Esta afirmação, bem como todo o magnífico discurso do Santo Padre, vai no sentido do reconhecimento de uma paternidade transcendente que permitirá a consolidação da fraternidade entre os homens. E, no entanto, verificamos que nem sempre assim é, nem sempre assim os homens pensam e agem numa conformidade fraternal. O fazer-se “próximo” para cuidar do outro será talvez das missões mais difíceis para o homem. E regresso à responsabilidade do ato de educar. Inevitavelmente. Reconheço-lhe a sua fundamental importância na formação do indivíduo. Mas reconheço-lhe, cada vez mais, a sua fragilidade e delicadeza. Entretanto, vou rezando por “dias mais claros”. Por todos nós. Paula Pessoa editar . IV Naturalização ou empréstimo? O ano de 2013 foi marcado por um conjunto de alterações, mas também por declarações de intenções, que produziram impacto nas organizações escolares e deixam marcas para os próximos anos. O quarto texto desta série de cinco aborda, de forma enunciativa e telegráfica, mudanças anunciadas ou concretizadas com impacte na regulação do sistema educativo. Na transposição ou tradução de um determinado termo de uma língua de partida para uma língua de chegada, sempre que a raiz da palavra da língua de origem permanece inalterada, podemos, na língua de chegada ter uma “naturalização” ou um “empréstimo”. Se, por exemplo, em vez de traduzir o verbo inglês “print” pelo português “imprimir” o fizer pelo termo “printar”, estou a “naturalizar” a palavra da língua de partida, com flexões e adaptações próprias da língua de chegada (português); se, em vez disso, usar a expressão “fazer um print”, mantendo inalterada a palavra da língua de partida, então uso um “empréstimo” do termo (fenómeno crescente – veja-se “chat”, “web”, “think tank”, “spread”, entre tantos outros). Várias medidas anunciadas em 2013, com efeitos práticos em 2014 e anos subsequentes, provêm de experiências aplicadas ou em curso noutros países. Os “cheque-educação” (ou serão “cheque-ensino”?) assentam num modelo de mercado competitivo, no qual habitualmente se adotam políticas de financiamento per capita e se promove a escolha dos pais através de escolhas mais abertas nos estabelecimentos escolares, análogo ao do mercado comercial. De acordo com Glatter (2008)[1], “O foco principal dentro do sistema, o centro de gravidade (…), não é a escola em concreto, mas sim a arena de competição – geralmente, escolas agrupadas numa determinada área geográfica competem entre si para obterem alunos e financiamentos. Estas arenas variam muito, dependendo de fatores como a natureza socioeconómica da área e a sua densidade populacional. Em algumas áreas mais vastas, pode não existir qualquer arena de competição”. Michael Apple e Gerald Bracey[2] enunciam vantagens e desvantagens da adoção dos “vouchers”. Entre as primeiras, contam-se a opção por melhores escolas, o aumento da diversidade de oferta, a pressão sobre a melhoria da qualidade e o acesso a melhores estabelecimentos de ensino. No campo das desvantagens, nomeiam a deslocação de financiamento e sua diminuição para as escolas públicas, a tentação de seleção de alunos à entrada, os efeitos negativos sobre professores, direções e alunos, o risco de minoração de prestação de contas (“accountability”) e de autonomia para as escolas privadas. O exposto é congruente com a ideia de criação de novos estabelecimentos de ensino como alternativa ou em competição com os existentes, sugerindo inspiração nas “free schools” inglesas e nas “charter schools” dos Estados Unidos da América. Joaquim Azevedo (2011)[3] alertava para a radicalização e agitação de fantasmas e medos, como a daqueles que utilizam a “(…) retórica política maniqueísta e facilmente assimilável [e que] defendem que para lá da regulação institucional realizada pelo Estado está sempre a mão do mercado, a mercantilização da sociedade civil. A atuação atomizada e fragmentada dos protagonistas, a privatização progressiva do bem público educacional, o neoliberalismo triunfante e a desunião nacional” (p. 200). Até que ponto será possível afirmar que estamos a trilhar um percurso que nos leva de um sistema educativo para um sistema de estabelecimentos escolares? Se o resultado for o da desigualdade crescente e da segregação social, que Stephen Ball[4] identifica como uma das consequências da introdução do sistema das “free schools”, até que ponto ficam as comunidades impedidas de escolha das “suas” escolas? Retomando a ideia inicial, faltará saber se estamos com medidas pensadas para serem “naturalizadas” ou “emprestadas”. Álvaro A. Santos [1] Glatter, R. (2008). Schools and schools systems facing complexity: organizational challenges in “As Escolas Face a Novos Desafios”. Lisboa: Inspecção-Geral de Educação. [2] Apple, M. & Bracey, G. (2001). School Vouchers. Disponível na Internet em http://nepc.colorado.edu/files/cerai-00-31.htm, consultado em 29 de dezembro de 2013. [3] Azevedo, J. (2011). Liberdade e Política Pública de Educação – Ensaio sobre um novo compromisso social pela educação . Vila Nova de Gaia: Fundação Manuel Leão. [4] Ball, S. (2013). Free schools: our education system has been dismembered in pursuit of choice, disponível em http://www.theguardian.com/commentisfree/2013/oct/23/education-system-dismembered-choice, consultado em 29 de dezembro de 2013. Um dos meus filhos frequenta uma escola que fica situada junto a uma igreja. E todos os dias é o sino que marca o passo de alunos, professores e auxiliares. É ele que indica as horas de entrada, os intervalos e as horas de saída. Descompassado do toque da própria escola, ele antecipa-se, por segundos, como que anunciando o momento que se segue, delimitando tempos de recreio e tempos de aprendizagem. “Vai tocar!” -apregoam os alunos entusiasmados ao ouvir as tão desejadas badaladas. E toca. E largam em corrida pela porta, em grande algazarra. Mas este sino tem também outros prenúncios. Se soa repetidas vezes, em toada de júbilo, é sinal de que há festejo na terra. Por vezes, chegam a estrondear foguetes, como que realçando o ambiente que se quer de festa. A escola sabe então que se preparam celebrações e ela própria se contagia num atmosfera de alegria. Mas se o sino soa melancólico, o seu dobrar noticia falecimento. E a escola compartilha a dor de alguém, de badalada em badalada. Os rostos do lado de fora do portão estão tristes e as vestes são escuras. “É a vida!” -suspira a professora e volta a concentrar-se nas contas de somar e de subtrair. “É como a matemática, umas vezes somando, outras vezes subtraindo” -afirma ela, trazendo para dentro da sala a esperança da aprendizagem da lei da vida. Quem habita a escola diariamente traz já em si o toque do sino, indicando sinais de alegria ou de tristeza. E dentro de cada uma das salas de aula, para além do português, da matemática e do estudo do meio, vão-se fazendo outras aprendizagens. E assim a vida da escola vai ressoando, por entre badaladas, ora mais alegres ora mais tristes, mas sempre vibrando. E nas outras escolas? Que sinos vão tocando? Que oportunidades de aprendizagem vamos fazendo ressoar? Paula Pessoa Sim, sim. Leu bem. A culpa é da vaca. Ou do gato. Ou do chefe. Ou dos colegas. Ou do governo. Ou do estabelecimento. Ou do tempo. Ou da crise. Ou seja lá do que for… Porque minha, não é de certeza… Quando não encontramos facilmente um culpado para aquilo que está mal, somos capazes de culpar um animal, o destino, o horóscopo, as outras pessoas, seja o que for… Desde que não tenhamos que nos pôr em causa, qualquer “bode expiatório” serve. Esta atitude de desresponsabilização do eu e de culpabilização do outro, normalmente não tem qualquer impacto positivo. Contudo, legitima a nossa inércia para com todas as situações que nos incomodam ou com as quais não concordamos dado que, no fundo, como a culpa não é nossa, nada podemos fazer… Em tempo de Ano Novo deixemos as culpas, as expiações, as acusações estéreis. Alternativamente, analisemos as possibilidades que temos de ser e de fazer diferente, melhor. Assumamos compromissos rumo às mudanças desejadas. Tracemos objetivos, exequíveis, desafiantes e tracemos planos para os atingirmos. E acima de tudo, não nos deixemos condicionar pela aceitação tácita de um suposto fatalismo castrador de novos horizontes. Ilídia Vieira *Título do livro de Jaime Lopera Gutiérrez Y Marta Inés Bernal Trujillo, “La culpa es de la vaca – anécdotas, parábolas, fábulas y reflexiones sobre el liderazgo”, Intermedio Editores Com este subcapítulo provocatório, Antonio Bolívar (cf. Como
Melhorar as Escolas, p. 4) pretende alertar-nos para uma situação paradoxal: a escola é uma organização que ensina e onde muitos alunos realizam aprendizagens fundamentais; no entanto, “a ironia da realidade escolar está no facto de instituições dedicadas à aprendizagem não terem, elas próprias, o hábito de aprender”. E não têm o hábito de aprender porque os indivíduos que as integram não querem ou simplesmente não veem nisso qualquer vantagem; ou têm outros interesses prioritários; ou não sentem o apelo da consciência profissional; ou não dispõem de lideranças mobilizadoras e pró-activas; ou se acomodam à continuada certificação da menoridade intelectual; ou não sentem a pressão externa para; ou… E as organizações só aprendem através de indivíduos que aprendem. Assim, para que uma escola aprenda (com os seus erros, êxitos, limites, insuficiências…) é preciso induzir a maioria dos seus membros a querer aprender. E a gerar cinco grandes processos de acção (cf. ibidem): i) resolução sistemática dos problemas. Diagnosticar os problemas concretos e passíveis de localmente serem resolvidos ou minorados e ter capacidade para os resolver através da reflexão crítica e novos modos de acção (mudando, muitas vezes de perspectiva de modelo); ii) experimentação com novos pontos de vista. Se enfrentarmos os novos problemas com as velhas receitas (mais ordem, mais autoridade, mais ensino, mais do mesmo…) então não aprenderemos nada… iii) aprender com a experiência passada. Porque só analisando as causas dos êxitos e inêxitos poderemos progredir. E aqui seria inteiramente dispensável o simulacro dos relatórios que nada dizem, nada adiantam, nada melhoram. Apenas cumprem o ritual burocrático... iv) aprender com os outros. Fechar-se nos seus próprios modos de atuar pode ser a morte da organização. Daí a importância da abertura, da confiança no outro, na aprendizagem interativa... v) transferir conhecimentos. Pois o conhecimento tem mais impacto quando é rápida e eficientemente divulgado entre todos os membros da organização e quando é partilhado por todos. Para que as escolas aprendam é, pois, preciso gerar ambientes propícios para a aprendizagem, criar estímulos, explicitar vantagens materiais e simbólicas. E, sobretudo, confiar, apostar, apoiar, reconhecer, contratualizar num quadro claro de direitos e deveres de todas as partes. Só assim poderemos sair do inferno onde nos queimamos e perdemos. José Matias Alves III – Organização do ano letivo De entre as alterações organizativas introduzidas em 2013, que produziram impacto nas organizações escolares e deixam marcas para os próximos anos, a organização do ano letivo de 2013-2014 merece, igualmente, destaque. Trata-se do terceiro de um conjunto de cinco tópicos de 2013 que ecoam em 2014. O conjunto de leis, regulamentos e normas que as escolas devem seguir para a organização de cada ano letivo possuem um tempo de vida relativamente curto. O caráter efémero desta parafernália normativa produz incerteza, reduz a estabilidade e tende, em várias circunstâncias, a criar interrupções ou, mesmo, a aniquilação de projetos de valor pedagógico. Por muito que pretendamos dizer e fazer o contrário, prevalecem critérios administrativos sobre os de natureza pedagógica. A organização do ano letivo de 2013-2014 constituiu um momento de angústia pela tardia definição da rede de oferta formativa das escolas e agrupamentos, sentimento que se estendeu a famílias que tiveram que esgaravatar uma vaga no curso pretendido em estabelecimento de ensino próximo. Apesar do aumento do número de alunos por turma, a diminuição da oferta formativa profissionalizante, a incerteza que se foi apoderando pelo alargamento do período para o fecho e autorização de turmas/cursos, entre outros aspetos, contribuíram para que um sentimento de desconforto perdurasse mais do que o desejável. As várias solicitações de mudança de curso ou, mesmo, de estabelecimento de ensino, constituem, simultaneamente, consequência e preditor de percursos adiados ou vacilantes. A diminuição das margens de gestão de tempo pelas direções das escolas foi “coroada” com o acordo de atribuição de tempos de direção de turma nos “cem minutos” do total de mil e cem minutos do tempo de trabalho semanal letivo dos professores. Para além de dificultar a designação para tão determinantes funções seguindo critérios de ordem profissional e pedagógica, da medida acordada não se conseguem vislumbrar benefícios de eficácia e de eficiência. Mais escolas optaram pela adoção de um regime de aulas de cinquenta minutos, em alternativa à organização de quarenta e cinco ou noventa minutos. Trata-se de uma opção que foi, em vários casos, pedagógica e democraticamente sustentada; noutros, porém, a lógica prevalecente foi a da comodidade administrativa pelo acerto dos minutos nos horários dos docentes. E, neste aspeto, havendo liberdade de opção por parte das escolas, a decisão não deveria ser confinada, apenas, a uma conformidade de curto prazo, mas ter em conta uma opção estratégica que assegure condições de aprendizagens e de trabalho mais vantajosas. Como afirmaria um amigo, que muito prezo, consegui-lo é contribuir para pôr em prática a “arte da gestão”. Álvaro A. Santos Clique aqui para editar . O INVERNO DO NOSSO DESCONTENTAMENTO Janeiro abriu chuvoso, cinzento, tristonho. Desde sempre, mesmo quando o sol bafeja o inicio deste interminável mês, me pareceu terrivelmente pesado o percurso que se segue às festas exuberantes da entrada do Inverno – natal e ano novo, a iluminarem um dezembro festivo e esfuziante, mesmo quando chove e o temporal nos sacode. Somos de facto seres da sugestão… e infinitamente mais permeáveis aos rituais e ritmos que assinalam o nosso viver colectivo do que eu pensava - nos tempos heróicos e ingénuos da juvenil desconstrução do mundo. E assim Janeiro, para mim, parece sempre o mais triste e o mais longo dos meses…Uma espécie de intervalo nos rimos vitais, na natureza e na vida, sem nada em vista, sem uma marcação festiva, sem interrupções, túnel cinzento sem saída à vista. Recomeço de deveres, retoma de rotinas, invasão deprimente de saldos e promoções a desvelarem a nossa latente penúria, ressaca inconfessada das festas do solstício… Sobra uma luzinha de festa no dia de Reis…mas tão breve como a precária prenda de latão, dourado ou prateado, a emergir refulgente de dentro de um mágico papelinho de seda escondido no bolo-rei... Mesmo essa agora banida ,a bem da nova moral sem metafísica , centrada na obsessão da saúde e da segurança…(George Orwell, deves voltar…e ver ao vivo quanto o teu magistral 1984 foi certeiro…e quanto se foi já bem mais longe no pesadelo que antecipaste…). Sinto-me pois confrontada com este longo “ inverno do nosso descontentamento”, tomando de empréstimo a metáfora que John Steinbeck usou para titular o seu último romance (1961), por sua vez inspirado numa passagem do Ricardo III de Shakespeare: “Now is the winter of our discontent made glorious summer by this son of York”. Inverno igual a tantos outros, simbolizados nos muitos janeiros da minha vida, fechados na sua falta de horizontes, numa espécie de inquietante dúvida acerca do retorno da cor e da vitalidade, das flores e dos dias mais longos e mais claros. Pausa inquietante no rolar dos dias que gostamos de ver renovados. Inverno todavia diferente desses outros. Porque o sentimento deste 2014 que começa extravasa a metáfora, transborda o ciclo natural…E instala-se, inquietante, ainda que o não queiramos, como um retrato bastante fiel deste janeiro simbólico que está a ser a nossa vida, fechada e sem horizontes, amordaçada neste estado de caos construído e manejado, a que se tem chamado eufemisticamente “crise”. A narrativa que nos é sistematicamente injectada por todos os meios e com a frequência máxima – não vá alguém distrair-se e pensar que a vida não é assim…. – faz de “crise” a sua palavra-chave. Bem escolhida, reconheça-se, porque facilmente assumida como “natural”…mas profundamente inexacta. Crise, explica Erik Erikson na sua teoria do desenvolvimento psicossocial, é um período de confronto entre tendências antagónicas de um indivíduo em crescimento - por exemplo, na adolescência, o confronto segurança-autonomia - de que resulta um salto em frente, um passo adiante num processo de desenvolvimento. Ou Thomas Kuhn, na sua “História das revoluções científicas (1962) quando se refere aos períodos de “crise” de um paradigma de produção científica comum tempo de convulsões profundas, resultantes de um desajuste de um esquema estabilizado de pensamento científico face a situações novas, originando a busca de novas soluções – e com isso gerando o que Kuhn chamou de “ períodos de ciência extraordinária”, de que resultará, na maioria dos casos, um novo e mais complexo paradigma. Crise-conflito, crise-crescimento, crise- reação criativa a novos desafios, crise-lugar de alquimia geradora de novas formas de ser , de agir, ou de pensar. Não estamos pois numa crise. Antes somos alvo de um jogo de xadrez económico-financeiro, invisível para a maioria de nós, por isso incombatível pelos meios tradicionais, que gera um conjunto de convulsões e dificuldades que, na superfície, se parecem com uma genuína crise. Mas não são. A crise é intrínseca e desencadeia-se em resposta a alguma coisa nova. Este caos que nos sufoca é extrínseco, provocado e gerido sem nosso controlo, e somos nós que estamos a ser forçados a responder a alguma coisa que nos é profundamente exterior. Com indução de culpabilização à mistura para apicantar a coisa e aumentar o efeito-sugestão. Da crise genuína nasce sempre crescimento de quem a atravessa ou sofre; deste caldo a que indevidamente chamam crise só nasce retrocesso. Para benefício de alguém. Mas não certamente dos sujeitos envolvidos. Por isso este janeiro me pesa mais. Mas não me cega,. O inverno que começa é de pesado descontentamento. Mas tem lá adiante a renovação anunciada da vida, do sol e da claridade. Pode ser transformado num “glorious summer”, nas palavras de Shakespeare. Porque, como ensinou há muito Lavoisier, nada se perde, nem se cria. Apenas tudo se transforma. Maria do Céu Roldão |
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AutorDiplomados e alunos da Católica Porto Educação Arquivos
August 2017
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